Novamente remexendo em escritos antigos, encontrei mais uma crônica, de junho de 1987, ano em que foi instalada, em 1º de fevereiro, a Assembleia Nacional Constituinte, sob o comando de Ulysses Guimarães.
E comecei com a pergunta:
É possível recompor a dignidade que se perdeu pelo caminho?
A riqueza produzida em um país é um produto social. Vem de uma imensa cadeia humana e deveria ser distribuída de forma justa. Caso contrário, a probabilidade da violência tornar-se cotidiana é evidente. Como acontece hoje no Brasil, onde o salário mínimo não garante o mínimo para a sobrevivência digna de ninguém. Por trás dos muitos assaltos, dos roubos, das prisões superlotadas, da miséria exposta nas ruas, das pessoas dormindo nas calçadas, das invasões, está o abandono absoluto de uma grande parcela da população. Fruto de uma sociedade rica e pujante, mas profundamente mesquinha, pois paga aos seus trabalhadores o mais baixo salário do mundo e ainda exige deles que se calem.
Foi sob esse clima que viveu e se extraviou por muitas décadas a cabeça do homem brasileiro. Este mesmo homem que hoje vive tentando o resgate, o retorno à sua essência em busca de dignidade, de afeto e comunhão amorosa. É um homem que retorna espoliado e algo endurecido, temperado por um sofrimento que o fez aprofundar o sentido crítico e a visão de mundo.
A melancólica realidade já não se esconde mais. Não há como disfarçar os desvios, o que se perdeu, a injustiça, a miséria, a violência. Mas há ainda uma tentativa das matrizes humanistas, que ressurge da possibilidade de um reencontro. E da possível recomposição de tudo o que foi extraviado pelos caminhos impostos pelos tiranos, que pode resultar num homem novo, endurecido, mas terno, que ainda luta, mas já não se ampara apenas na esperança. Um homem consciente de que só a solidariedade pode nos salvar do caos.
O brasileiro sobrevive afogado em padrões onde o dinheiro determina tudo. O cotidiano é um exercício que exaure, mas a ditadura militar foi eliminada, mesmo que não na profundidade necessária. É preciso agora dar um fim ao sistema político, econômico e social que sustentou o fascismo dos generais e tantos outros e hoje ainda alicerça a ganância e o abuso de poder de políticos que reinam soberbos no Planalto Central do País.
O que fazer? Como fazer?
Com a palavra o povo e sua sabedoria.
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(Texto escrito em 11 de junho de 1987. Neste ano foi instalada, em 1º de fevereiro, a Assembleia Nacional Constituinte, sob o comando de Ulysses Guimarães. A finalidade era elaborar uma Constituição democrática para o Brasil, após 21 anos de ditadura militar. Os trabalhos encerraram em setembro de 1988, após a votação e aprovação do texto final da nova Constituição Brasileira).
Posso estar exagerando, mas este texto ainda é atual e hoje sinto falta de políticos como Ulysses Guimarães.
Foto da Capa: Tânia Rêgo / Agência Brasil