Tenho acompanhado alguns debates sobre editar fatos da história, ou seja, mudar a história de pessoas que foram consideradas heróis para bandidos ou vice-versa. Pensei em entrar nessa onda e editar o meu passado, pois tem alguns fatos que eu gostaria de deletar ou dar uma editada. Lembro de quando era criança de ir ao cinema aos domingos à tarde e, quando passavam os filmes sobre a conquista do oeste americano, tinha uma cena clássica, que era aqueles índios malvados atacando o forte do exército americano, onde poucos soldados resistiam bravamente, e iam morrendo. Quando restavam apenas poucos soldados, o comandante, a mocinha e o menino, a esperança de sobrevivência era pouca, pois as centenas de índios estavam quase conseguindo derrubar o portão do forte, a apreensão era total no cinema, os olhos todos vidrados na tela e não se colocava uma pipoca na boca. Bem, aí chega o momento esperado, toca aquela música característica da cavalaria americana chegando com a bandeira tremulando. A meninada ia à loucura, batíamos os pés, assobiávamos e a comemoração era geral.
Quando adolescente assistia os filmes do Indiana Jones e não batia os pés, mas gostava de ver ele ir superando os obstáculos enquanto os nativos que faziam parte da expedição para carregar as malas e para mostrar o caminho, iam morrendo quando as armadilhas eram acionadas ou quando aparecia a cobra ou quando parte do templo desabava, tudo isso para que o Dr. Jones conseguisse a relíquia que levaria para ser estudada na sua universidade e ficaria exposta no museu da sua cidade. Eu nunca me questionei como foram obtidas aquelas relíquias e nem o direito de retirá-las de uma cultura para expô-las em museus em outros cantos do mundo. Na época, não percebi que o filme Raiders of the Lost Ark foi “traduzido” para o português como “Caçadores da Arca Perdida”, porém, “Raiders” significa saqueadores, piratas ou assaltantes. Quem traduziu deu uma boa colaborada com o papel do Dr. Jones.
Em minha defesa, eu poderia dizer que tudo isso eram apenas filmes, lazer e diversão. Depois descobri que as histórias do cinema aconteceram aqui no Brasil, tanto com os índios quanto com o roubo de relíquias arqueológicas. Um exemplo disso foi o roubo do “Ubirajara”, um fóssil que viveu há milhões de anos no sertão do Cariri, que nos anos 90 algum Dr. Jones levou para uma universidade alemã e ficou exposto num museu. Depois de muita pressão da comunidade científica brasileira, o Ubirajara foi devolvido ao Brasil em 2023. Essa pressão tem dado resultado, outras relíquias estão sendo devolvidas, como foi o caso do manto Tupinambá, que estava no Museu da Noruega.
Se eu assistir novamente algum filme da conquista do oeste ou os filmes do Indiana Jones, certamente a minha atenção será voltada para os índios mortos, que provavelmente também tivessem um garotinho lhe esperando em casa e que ficou órfão. Acho que iria torcer para que o Mr. Jones não superasse as dificuldades e que desistisse de roubar o tesouro.
Agora falando sério, sou contra editar o passado, penso que os fatos devem ser contextualizados. Se um ditador foi considerado herói num determinado período da história, que se mostre como era a cultura da época e as forças que o tornaram herói. Da mesma forma, se os atores apareciam fumando nos filmes do passado, que se discuta os males que o cigarro causou e continua causando, mas nada de apagar o cigarro das cenas destes filmes. O que existiu faz parte da história e deve ser respeitado, quer a gente goste ou não. Não sejamos Dr. Jones saqueando fatos da história.
Referência:
– Achados, roubados e apagados – Episódio dez 2023 do Ciência Suja.