Numa de minhas noites insones, em que busco filmes B capturados a esmo em algum servidor de videofilmes para tentar desconectar os neurônios, um diálogo entre personagens num desses filmes me chamou a atenção: um personagem alude à necessidade e dificuldade de perdoar, ao que o outro retruca que, no fundo, perdoar é uma escolha, seja ela pessoal, sociopolítica, judicial, ético-moral, religiosa, e por aí vai. Pronto – estava arruinado meu torpor…
Já há dias o país vem sendo sacudido pelo debate envolvendo dois contextos de proposta de perdão sociopolítico-judicial: um mais recente, envolvendo os episódios de vandalismo explícito na Praça dos Três Poderes, em Brasília, ocorridos praticamente no day-after da posse do governo Lula, em 08 de janeiro de 2023. Mais que vandalismo, aliás, tais atos foram judicialmente tipificados como tentativa de abolição violenta do estado de Direito, e 2.182 pessoas foram presas e processadas por participarem direta ou indiretamente dos atos de vandalismo, transmitidos em tempo real por TVs brasileiras e estrangeiras. Mas há um outro contexto histórico, que guarda relação com tudo o que foi desencadeado pelo filme “Ainda estou aqui”, desde seu lançamento até a culminância do último domingo de Carnaval, quando tal obra recebeu o prêmio de Melhor Filme Internacional, no certame do Oscar deste ano.
Dentre o que foi desencadeado, três perguntas: a primeira, onde estão os corpos de muitos que sucumbiram à luta armada contra a ditadura militar pela qual passou este país? A segunda, onde estão os responsáveis por estes assassinatos políticos? A terceira, finalmente, qual é efetivamente a extensão do perdão que celebramos nesse país, há quarenta anos, por ocasião da iniciativa de “anistia ampla, geral e irrestrita”? Tal iniciativa gerou a lei sobre a qual se pretendeu “pacificar” o país e pavimentar o caminho de retorno à democracia, concedendo-se “perdão” aos “subversivos” que cometeram crimes políticos, e apagamento da responsabilidade dos algozes dos Rubens Paivas, dos Herzogs, das Dilmas, dos que foram silenciados à custa da tortura e da morte.
Ao bradar pelas consciências do país afora o mote do livro de Marcelo Rubens Paiva, “Ainda estamos aqui”, que gerou o filme ora aclamado internacionalmente, trouxe à tona a permanência de um pleito de pleno direito, ao qual se associa um processo de atribuição de responsabilidade civil, criminal e política: onde estão nossos mortos, onde está a responsabilização do Estado brasileiro no assassinato e ocultação dos cadáveres, e finalmente: o perdão/anistia de 40 anos atrás deveria ser considerado suficientemente “amplo e irrestrito” a ponto de inviabilizar tais demandas? Demandas ocasionalmente tratadas com desdém e desrespeito, na base do “quem gosta de osso é cachorro” – frase execrável do então deputado federal Jair Bolsonaro.
E aí se fecha o círculo entre as demandas que geraram a lei de anistia de há quarenta anos, lei em nome da qual se pretendeu “pacificar” o país na base de um “esquecimento cívico” dos crimes de ambos os lados em “guerra”, e as demandas atuais em prol de anistia dos atos do 8 de janeiro de 2023, novamente em prol da “pacificação” do país. Se concordamos que o perdão é uma escolha, que escolha estaríamos fazendo ao optar pela amnésia ampla, geral e irrestrita, tal como preconizada há quarenta anos, em postura conducente a eventual perdão para os crimes de lesa-república e lesa-democracia do 8 de janeiro de 2023?
Escolhas, muitas vezes, comportam dinâmica de perdas e ganhos. Perde-se aqui para ganhar ali. Renuncia-se a certos pontos em prol de outros. Frequentemente escolhe-se “o menos ruim”, para poder escolher, em prol da manutenção do próprio processo de escolha. Nos termos das escolhas aqui aludidas, é necessário ressaltar que não se trata de escolhas restritas ao foro pessoal, apesar de que esse rebatimento é inevitável (pois cabe a cada um de nós, em nossa privacidade, conviver com a consciência da escolha feita, mesmo tendo sido feita na base de ato coletivo).
O que se perde ao perdoar os insurgentes do 8 de janeiro, como ato de Estado? Perde-se o princípio da defesa constitucional da democracia nesse país. Isso é límpido e tangível. O que se ganha? Ganha-se, aludem alguns, e mais uma vez, a “pacificação” desse mesmo país. Pois se acalmam frustrações de grupos políticos perdedores das últimas eleições. Afinal, dentre tais grupos há segmentos inseridos no estamento armado, na força militar, e não é saudável mexer em tais vespeiros. Melhor contemporizar. Removendo, de quebra e no bojo do mesmo pacote, ilegibilidades oriundas de crimes outros de lesa-constituição, mais uma vez. Enfim: perde-se substância democrática, ganha-se pela evitação de um confronto que historicamente sempre se temeu nesse país.
É claro que os termos dessa escolha podem ser formulados diferentemente. Mas cada um e cada uma deve se perguntar qual escolha quer fazer. Qual o vínculo político-histórico que cada um e cada uma pensa poder estabelecer entre a anistia de 40 anos atrás e a anistia de agora? De minha parte, abro mão da postura do escriba que apenas traz os dados à consideração da análise e dou a cara a tapa. Vivi os debates de há quarenta anos, fiquei particularmente feliz pelo fato de que, naquela ocasião, nós em Pernambuco pudemos ver Dr. Arraes “voltar pela porta que saiu”, conforme cordel da época, e ser acolhido no aeroporto de Guararapes nos braços do povo, como tantos outros em outros portos e aeroportos. Mas, diferentemente do que vivenciaram argentinos e chilenos em seus processos de retomada da democracia pós-respectivos períodos de ditadura, nós fomos politicamente fracos (e mesmo omissos) em termos de certas responsabilidades inamovíveis do Estado brasileiro, em termos de crime que não poderiam prescrever, nem serem esquecidos, perdoados, anistiados.
Estas demandas das Eunices, como foi o caso das demandas das Mães da Plaza de Mayo na Argentina, não poderiam jamais ser caladas, sob pena de, ao invés de se caminhar para pacificação, caminhar-se para a omissão covarde que abrigaria o germe de recaídas golpistas futuras. Nesse sentido, 8 de janeiro e seus pleitos de anistia preventiva são filhos da tibieza de nossa anistia “ampla, geral, irrestrita” de há quarenta anos. Isto posto, para o próximo encontro marcado com a história e com o penoso processo de construção republicana neste país, a escolha face aos eventos e responsabilidades do 8 de janeiro não pode mais uma vez titubear. Que se escolha o compromisso republicano e constitucional da devida criminalização dos atos cometidos e responsabilização de seus atores – todos, inclusive os que agiram à sombra, remotamente, dentro e fora do país. Devemos isso às Eunices que ainda estão aqui, e que nos cobram a responsabilidade por Eunices que poderão vir.
Ainda precisamos continuar aqui. NÃO ao perdão estapafúrdio e irresponsável para os delinquentes do 8 de janeiro de 2023. Por uma escolha cidadã.
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Foto da Capa: Marcelo Camargo / Agência Brasil