Tenho buscado, nessa coluna, ressaltar a importância da cultura para a preservação da identidade simbólica das cidades. Isso porque, sem nos darmos conta, lentamente, a cidade tradicional está desaparecendo em um mundo cada vez mais urbanizado. Não faz muito tempo era fácil separar o rural do urbano. Em 1950, dois terços da população viviam no campo, hoje, 85% vive em zonas urbanizadas. Em certas regiões do país, as cidades formam um continuum tão denso que fica difícil de individualizá-las se vistas desde cima. Como muitos moradores têm dificuldade de saber onde começa uma e termina a outra, prefeituras usam o recurso de pórticos e placas para mostrarem esses limites.
Entretanto, percebo que a maioria das pessoas mantém dentro de si uma ligação muito forte com a cidade onde vive e que é independente do conhecimento geográfico completo desse lugar. Ao que parece, a ideia que o cidadão faz do lugar onde vive, hoje, é proveniente de uma construção cada vez mais simbólica. Cada um carrega, dentro de si, uma imagem de sua cidade. Podemos descrever em detalhes alguns poucos bairros onde vivemos, mas para definir nossa cidade precisamos apelar para seus monumentos, marcos referenciais paisagísticos e arquitetônicos. Os cariocas têm a facilidade de os terem em abundância: o Pão de Açúcar, o Corcovado, os Arcos da Lapa. Brasília, nem se fala. O próprio desenho da capital brasileira é único. Outras, como São Paulo, têm imensa dificuldade: o Anhangabaú? Poucos o conhecem e, infelizmente, é repaginado de tempos em tempos como se fosse loja de shopping. O MASP? Certamente. Ali, graças a genial arquiteta Lina Bo Bardi, temos um marco referencial da capital paulista.
Enfim, as cidades, na atualidade, são muito mais abstrato-simbólicas do que físicas na cabeça de seus cidadãos. Em sendo assim, parece que deveríamos ter todo o cuidado com esse aspecto cultural-simbólico, porém não é o que acontece no Brasil. Aqui se estabeleceu que o uso da terra urbana não é social, mas sim mercadoria, matéria prima de atividade econômica produtiva. Em nome de empregos, do PIB, da economia de mercado e da má leitura do direito à propriedade, a cidade vai se construindo ao sabor do capital. E, pior, sem o contraponto do poder público que por querer pegar carona na proatividade da atividade capitalista delega a ela os desígnios do futuro urbano brasileiro. Não é preciso dizer que aspectos simbólicos não fazem parte do escopo das empresas capitalistas, a não ser que sejam para reforço de sua própria imagem. O que só piora o caos urbano que estamos tratando aqui.
Um bom exemplo disso tudo é o processo do Cais Mauá, de Porto Alegre, posto em leilão na Bolsa de Valores de São Paulo. Para sorte nossa, ninguém se interessou em apresentar lances. O lugar do leilão já diz muito desse projeto… Teria sido porque o projeto não agradou? Não, o desinteresse é pelo negócio. Sim, vamos falar do que se trata. De um negócio imobiliário, venda de um terreno para construção de Xm² e algumas contrapartidas que vão de contrapeso ao filé. Os candidatos acharam que tinha muito sebo nessa carne, se quisermos ficar na metáfora do açougue.
O projeto que foi apresentado aos nossos olhos não estava à venda. Aquilo é meramente ilustrativo do potencial construtivo. Aliás, nem é um projeto, é um estudo volumétrico. Quem vencesse o tal leilão faria o seu próprio projeto. Os arquitetos autores do que nos foi apresentado poderiam ou não participar do projeto a ser desenvolvido pelos vencedores. Entenderam? Aquilo que vimos e não gostamos para as Docas pode ser pior e ninguém vai poder reclamar. Quer dizer, foi feito um investimento caro para construção de uma imagem apenas virtual do que possivelmente não seria construído. Faz sentido?
Só que estamos falando da fachada do centro de Porto Alegre, do porto que deu origem ao seu próprio nome. Como assim, entregaremos a empreendedores particulares o destino de área tão nobre? Não será feito um esforço conjunto, União, Estado e Prefeitura, para enterrar o metrô, revitalizar os quarteirões entre o Mercado Público e a Rodoviária integrando-os urbanisticamente à margem do Guaíba com um projeto equilibrado às condições históricas e paisagísticas de Porto Alegre?
Vejo a volta da racionalidade na esfera federal como uma oportunidade para que esse projeto seja dividido em dois. A parte das Docas, incluindo o rebaixamento do Trensurb e a renovação de áreas desvalorizadas do centro, e a parte dos Armazéns com urbanização assumida pela prefeitura, como foi e está sendo feito no restante da Orla. A discussão da ocupação dos armazéns passaria a ser a do interesse público com parceria privada sem nenhum problema. Não vejo nenhum problema nas PPP (parcerias público privadas), apenas me incomoda quando ela não contempla o P de pública. No caso do Cais, vejo, antes de mais nada, um negócio imobiliário. E pelo visto desinteressante para ambas as partes.