“Que idade teu pai tinha quando morreu?” A pergunta feita pela terapeuta na última segunda-feira foi a chave para destravar e esparramar o conteúdo do armário mental em que eu vinha escondendo os pequenos desconfortos e tristezas com que não estava querendo lidar ultimamente. Junto com as lágrimas, veio a consciência de que os medos, as raivas e os sentimentos menos nobres que têm me causado incômodo há algumas semanas são o transbordamento desse peso de que eu acreditava ter me livrado ao completar 49 anos, em fevereiro passado, mas que ainda estava ali, mal e mal escondido sob uma coberta de boas intenções.
Não está sendo tarefa simples lidar com o fato de que estou mais velha do que meu pai jamais foi. Tenho pensado bastante no quanto gostaria de poder conversar com ele hoje, para dizer que cada vez mais sou grata ao esforço que ele deve ter feito para me transmitir a segurança que me passou. Na minha infância e adolescência, meu pai era bem mais jovem do que sou hoje, e embora eu tenha noção do quanto evoluí nas minhas quase cinco décadas de vida, frequentemente me pego duvidando de já ter alcançado o nível de compreensão do mundo que eu acreditava que ele tinha.
Neste domingo, teremos um almoço em casa para comemorar o dia em que ele é um dos homenageados junto com o pai da minha filha e o avô paterno dela. E é inevitável a melancolia de pensar que bom seria tê-lo conosco. Posso intuir, mas jamais vou saber como ele estaria pensando. Que caminhos a vida o teria levado a percorrer dos 48 aos 75 anos, que teria hoje? Como ele estaria fisicamente? O que diria da minha forma de educar a neta? Em quem votaria? Será que veria todos os jogos do Inter na minha casa, com o genro? Aliás, como os dois se dariam? Que livros estaria lendo? Que séries estaria vendo? Teria continuado a ir ao cinema para ver os filmes que só valem a pena na tela grande?
Que sensação de desperdício quando penso que meu pai nem sequer viveu para usar a Internet e a vastidão de informações e conhecimento disponíveis. Isso porque, na ausência do Google (ou, antes dele, do Altavista), era ele o meu oráculo. Era a ele que eu apelava para saber o que não sabia, entender o que não entendia. E foi ele quem me mostrou que não saber ou não entender não era um problema, mas que sempre era possível ir atrás da informação, da explicação, do conhecimento. Foi quem me fez amiga das enciclopédias, frequentadora de biblioteca, devoradora de periódicos dos mais diferentes tipos. Meu pai foi, sem dúvida, meu maior professor. E a principal lição que me ensinou, ironicamente contrariando a lógica machista segundo a qual vivia, foi a de que eu não podia depender de ninguém na vida adulta, que se fosse para me casar, que fosse por querer, não por precisar. “Ninguém garante que vais ter a sorte da tua mãe”, ele costumava dizer, rindo, numa piada autocongratulatória que, imagino, visse de fato como verdade.
Gosto de acreditar que herdei dele o senso de humor, o senso de justiça e a generosidade. Ainda que, de quebra, tenha ficado também com alguns hábitos pouco saudáveis, algumas neuroses e outras tantas inseguranças. Este será o 28º Dia dos Pais sem o Jurandir fisicamente presente. E me pego chegando a ele sem saber direito o que fazer com o peso da saudade, da ausência e dessa ideia absurda de que o pai que trago comigo há três décadas é mais jovem do que eu.
Ainda não entendi direito o que fazer com isso. Se é que preciso fazer algo. Na dúvida, segui uma das tantas dicas preciosas que ele me deu: “Quando as coisas não fizerem sentido ou estiverem pesando demais, passa para o papel”. Pena que não tenho como saber o que ele diria de eu compartilhar esses escritos com o resto do mundo.