Você sabe, Rebeca, o que cabe nesse gesto captado e historicamente registrado em uma foto icônica como a reverência recebida de suas colegas norte-americanas?
Cabem minha irmã, minha mãe e minhas avós.
Cabem primas, filhas, sobrinhas, noras e bisavós e tantas griots.
Cabe toda a ancestralidade das mulheres que há séculos constroem as riquezas e a História do Brasil.
Cabe a sororidade, palavra pouco difundida, mas tão simbólica quando duas mulheres negras vencedoras, preparadas emocionalmente e treinadas fisicamente no país mais rico do planeta, com todos os recursos disponíveis, reverenciam sua irmã de cor.
Após o pódio, em entrevista, Biles disse:
“A Rebeca é incrível. Ela é uma rainha. Estávamos muito animadas. Decidimos demonstrar nosso respeito. A Jordan disse que deveríamos fazer e eu disse que sim. É por isso que fizemos. Era o correto a ser feito. Amo Rebeca. Ela é incrível. Ela é uma pessoa maravilhosa e uma ginasta melhor ainda. Ela me ajuda a estar concentrada. Ela me faz competir melhor.”
A deferência de Biles e Chiles à colega ginasta campeã Rebeca Andrade remete a tempos longínquos, mas que estão registrados em suas peles e almas, emanando a força da ancestralidade. Ao chamá-la de rainha, remontam à riqueza e à grandeza de mulheres como Moremi Ajosoro, considerada a “mãe da nação iorubá”; Njinga Mbambi, rainha de Ndongo e Matamba; Amanitore, uma das maiores Candaces (rainha-mãe), de Cuxe; ou mesmo Josina Machel, que lutou bravamente pela independência de Moçambique.
As atletas norte-americanas trazem, nesse reconhecimento, uma nobreza que se construía em conjunto com um povo que se espelhava nas suas rainhas. Onde mulheres negras sempre foram referência em liderança, estratégia, perseverança e cuidado. E isso está muito longe de reinos que se ergueram às custas do imperialismo, dos saques, de genocídios, de imposição cultural, de racismo e de sexismo, como bem remonta a história da Europa, tão valorizada na cultura ocidental, por seu ouro e brilhos extraídos de outros continentes.
Cabe, a toda a comunidade masculina, entender que o gênero e a raça/cor predominante no Brasil estão no lugar onde sempre mereceram. Não só nesse pódio, mas no conjunto de conquistas obtidas pelas mulheres brasileiras nos Jogos Olímpicos de Paris 2024, em um contexto completamente desafiador.
Até o dia 4 de agosto de 2024, os holofotes do Olimpo no Brasil eram direcionados a Robert Scheidt e Torben Grael, pelas importantes conquistas de 5 pódios em jogos olímpicos, como velejadores. Scheidt recebeu, aos 9 anos, um barco de presente dos pais, no qual aprendeu a velejar no Yacht Club Santo Amaro. Aos 11, começou sua trajetória de vitórias, com o título sul-americano na classe Optmist. Foi o ponto de partida para uma vida de muita dedicação e grandes resultados. Seu parceiro, Torben Grael, iniciou nas águas aos 5 anos, pelas mãos do avô e seguindo uma tradição da família descendente de dinamarqueses formada por campeões.
Quantas crianças brasileiras frequentam um Iate Clube aos nove anos? E das que frequentam – sem ser filhas de pessoas abastadas – quantas ganham um barco de presente aos 9 anos ou começam a velejar aos 5?
É aí que chegamos ao falar do contexto desafiador que está representado na trajetória de Rebeca Andrade e a potência de suas conquistas. Ela, aos 10 anos, saía de casa, onde vivia com sete irmãos e era criada pela mãe solo, Rosa, para dedicar a vida ao esporte. Agora, 15 anos depois, testemunhamos o resultado: maior medalhista olímpica da História do Brasil. Um caminho que teve contornos bem distintos de seus antecessores nessa posição de destaque internacional.
Cabe o ensinamento de que competir também é crescer e reconhecer que a campeã – aqui, na figura de Biles – o é porque quem está ao seu lado também é. Ela cresce quando quem está com ela também cresce.
E aqui podemos recorrer ao conceito de Ubuntu, que expressa a filosofia de vida africana, originado nos povos Bantu, compostos por vários grupos étnicos da região subsaariana, principalmente na parte sul do continente.
Ubuntu é compreendido como “eu sou porque nós somos, e dado que somos, por isso eu sou”. Ou seja, Biles sabe que seu espaço de conquistas históricas existe por reconhecer a beleza das realizações de Rebeca, a quem ela apoia há anos. Mas isso não precisa estar expresso em palavras, basta um gesto.
Cabe, ainda, a uma nova geração de meninas e meninos que irão se espelhar em ti, Rebeca, na tua representatividade, tendo em seu próprio país o referencial de excelência mundial.
Cabe todo o teu esforço, Rebeca, de uma vida que escolheu vir ao mundo para brilhar, e que tem como referência outra mulher negra: Daiane dos Santos.
Cabe o coração de Rosa, tua mãe, que abdicou de muito para te ver no lugar mais alto.
Cabem 200 milhões de corações de uma nação que precisa idolatrar as suas mulheres.
Por fim, registro dois marcos importantes:
Primeiro, parafraseando a filósofa brasileira Djamila Ribeiro, em seu artigo Respeitem Serena Williams, agora, usando teu exemplo, Rebeca Andrade: “Temos sorte de ser contemporâneos de uma ginasta desse nível. Quando Rebeca Andrade se aposentar, fará muita falta ao esporte.”
Concluindo, é oportuno relembrar o majestoso samba-enredo de 2022, “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da beija-for”, da Beija-flor de Nilópolis, do Rio de Janeiro.
Mocambo de crioulo sou eu, sou eu
Tenho a raça que a mordaça não calou
Ergui o meu castelo dos pilares de Cabana
Dinastia Beija-Flor
A nobreza da corte é de ébano
Tem o mesmo sangue que o seu
Ergue o punho, exige igualdade
Traz de volta o que a História escondeu
Obrigado, Rebeca!
Fontes:
Rebeca Andrade leva ouro e se torna a maior medalhista brasileira de Jogos Olímpicos
Simone Biles elogia Rebeca Andrade e explica reverência no pódio: "Ela é uma rainha"
Ubuntu como modo de vida: contribuição da filosofia africana para pensar a democracia
Robert Scheit
Torben Grael - Biografia
Quem tem medo do feminismo negro? - Djamila Ribeiro, Companhia das Letras (p. 79)
Poderosas Rainhas Africanas - Mariana Bracks Fonseca, Editora Ancestre (p. 16, 32 e 160)
Empretecer o Pensamento É Ouvir a Voz da Beija-Flor
Wilkipédia
Rebeca Andrade
Robert Scheid
Torben Grael
Eduardo Borba é jornalista graduado pela PUCRS, praticante de corridas de rua e de ações para promover a Diversidade, Equidade e Inclusão. Mestre em Comunicação Social e especialista em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global.
Foto da Capa: Reprodução TV Globo
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