Chego à hora marcada para a revisão anual do carro. O consultor está a postos com água gelada, café com açúcar. E lábia. Somos inocentes na manhã de Porto Alegre, mas não a sombra que nos norteia e produz a lábia que ele entoa e eu tento escutar. É para começarem os embates, mas de repente sou acometido por um impulso irrefreável de fazer um poema. Impossível saber de onde vem. Parece que iniciou no cabelo da consultora ao lado dele, que me conduziu para outras belezas perdidas no tempo. Pouco importa, estão para ser reencontradas. É preciso atender ao chamado do poema que já me soprou uma palavra não qualquer. A essa altura, perco os itens obrigatórios da revisão, enquanto o poema avança. Uma palavra leva à outra, estamos já no terceiro verso, enquanto o consultor agora sopra os itens recomendáveis. O poema alcança a segunda estrofe e o orçamento está quase em dois mil. É preciso interromper o poema subjetivo para deter os gastos objetivos e cortar produtos para o polimento de motor e para-brisa. Parece que não dá para fazer o mesmo com o balanceamento, a geometria e o rodízio de pneus, por mais que não constem na lista dos itens obrigatórios. O orçamento volta a 1500 e o poema retoma a segunda estrofe. Os embates seguem, sob a sombra do capitalismo selvagem. O poema não se encolhe e estou cindido; parte poeta, parte detendo o orçamento. Ficamos, por um lado, acordados em mil e duzentos, divididos em três vezes, o mesmo número de estrofes do poema que sonha estar pronto para a revisão. Ao contrário da de um carro, serão muitas, todas gratuitas.
Na volta, no Uber, não há o que fazer senão contar causos. Denis, o motorista, por motivos de sobrevivência, é inimigo das concessionárias e tenta fazer de mim, no curto trajeto de volta para casa, um sujeito autônomo e independente para lidar com carros e defender-me do capitalismo selvagem em torno deles. Ainda na Benjamim Constant, a primeira lição é identificar se o freio está gasto, botando o dedo entre ele e as pastilhas para observar bem o espaço remanescente. Já na Quintino, alego que, infelizmente, sou um péssimo aluno e levei dez anos para identificar, na bunda dos vidros, um palmito de boa qualidade. Na Casemiro de Abreu, ele se interessa pelo assunto culinário e interrompe a lição mecânica: – Denis, precisa olhar atentamente a base de cada palmito e, quase como entre o freio e as pastilhas, os bons palmitos correspondem a uma massa compacta sem manchas nem ranhuras.
Lembro com saudades do meu tio Max, este pai postiço que me ensinou isso e tantas outras coisas importantes. Denis é surfista nas horas vagas, por isso amigo do Beto, um amigo em comum, mais que isso, um irmão da vida, embora para ele o Beto seja o Uga-Uga. Puxa, eu não sabia. Em casa, mando mensagem para o Beto Uga-Uga e rimos da coincidência, durante um tempo perdido que não pode ser contabilizado em dinheiro, mas, à noite, sentiremos que foi a melhor parte do dia. Falando nisso, escrito e impresso, o poema de três estrofes parece expressar algo parecido: em termos de grana, ele não vale nada, mas é, sem dúvida, o fato mais importante do dia.
Foto da Capa: Freepik
Todos os textos de Celso Gutfreind estão AQUI.