Este ano estou longe e fiquei meio desligada do carnaval no Brasil. Vi alguns poucos flashes na televisão francesa, que nada entende do fenômeno, e posts no Instagram com recortes guiados pelo algoritmo. Graças a meu envolvimento com a Odabá, que não significa militância, mas mudança de mentalidade, o algoritmo me traz informações interessantes. Porém, as pessoas são as minhas melhores fontes, e foi a nossa griô Maria Cristina Ferreira Santos quem me deu a notícia sobre uma homenagem em Porto Alegre ao escritor Oliveira Silveira.
Aliás, vale lembrar que os desfiles em Porto Alegre acontecem nos dias 3 e 4 de março no Porto Seco. Sei que, para boa parte dos leitores da Sler, essa informação pouco importa. Quem se importa com o carnaval da capital gaúcha afinal? Aparentemente, poucos, muito poucos. Tirado da região central e jogado quase fora da cidade, lá no Porto Seco, os desfiles das escolas de samba em Porto Alegre fazem parte da romaria de resistência e resiliência do povo da periferia que, sabemos, é majoritariamente negro. E são justamente essas duas características que permeiam a trajetória e a obra de Oliveira Silveira.
Ah, você nunca ouviu falar em Oliveira Silveira? Que pena! Mas não se avexe, não. Lamentavelmente isso é normal. Tanto se fala em representatividade, em valorização da cultura negra, no entanto ainda temos muito a trilhar em termos de disseminação de expoentes, projetos e iniciativas que, para muitos, só ecoam no carnaval e em novembro. Já falei aqui mesmo na Sler, né: somos negros o ano inteiro.
Homem das letras, da literatura, em especial da poesia, Oliveira Silveira foi um dos mais profícuos autores gaúchos de sua geração, militante do movimento negro e um dos articuladores do Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro e oficialmente instituído pela Lei nº 12.519 em 2011. Nascido na zona mais rural de Rosário do Sul, ele se transferiu para Porto Alegre onde conclui os estudos do que seria hoje o Ensino Médio e, depois, no curso de Letras da UFRGS. Foi na capital que ele abriu espaço e atuou em organizações como clubes sociais negros, escolas de samba, congadas, além de organizar grupos de ativismo político e promoção da cultura negra como o Grupo Palmares, o Grupo Semba, a Revista Tição e a Associação Negra de Cultura. Vencido pelo câncer, Oliveira Silveira morreu em janeiro de 2009, aos 67 anos.
Sua obra é marcada em cada linha pela questão racial. Um exemplo é o poema “Encontrei Minhas Origens”. Publicado em 1981, é uma síntese de autodescoberta que permeia o meu e os caminhos de muitos de nós, negros:
Encontrei Minhas Origens
Encontrei minhas origens
em velhos arquivos
livros
encontrei
em malditos objetos
troncos e grilhetas
encontrei minhas origens
no leste
no mar em imundos tumbeiros
encontrei
em doces palavras
cantos
em furiosos tambores
ritos
encontrei minhas origens
na cor de minha pele
nos lanhos de minha alma
em mim
em minha gente escura
em meus heróis altivos
encontrei
encontrei-as enfim
me encontrei
Pois encontrei Oliveira no Mercado Público lá pelos meados dos anos 90. Eu, ainda estudante de jornalismo; ele, já uma sumidade. Tomamos um café e falamos sobre escrita, negritude, luta… Ficamos de nos reencontrar, mas isso nunca aconteceu. Figura fascinante e ao mesmo tempo arredia, ele era inflexível em algumas posturas. Não aceitava, por exemplo, o casamento interracial ou a “aceitação natural” do catolicismo como religião entre o povo negro.
Por sua trajetória, pesquisas e engajamento na comunicação e valorização da presença negra na imprensa, ele foi fonte para o meu trabalho de conclusão, por indicação da minha orientadora, Iara Conceição Bitencourt Neves, não por acaso negra e “emprestada” da Biblioteconomia, já que na Comunicação não encontrei alguém com tempo ou interesse para abraçar a causa. Minha pesquisa tinha como foco o jornal A Voz do Escravo, baluarte da imprensa negra editado em Pelotas ainda antes da abolição de 1888.
Eu já era formada em Letras na mesma UFRGS onde fazia Jornalismo, mas nunca tinha tido a oportunidade de estar frente a frente com esse homem, com esse autor que para mim era, e é, uma entidade. Fiquei abismada com a cultura, a elegância, e com a delicadeza que ele demonstrava sem renunciar a uma luta visceral.
Um pouco de tudo que ele e sua obra representam aparece nas linhas e entrelinhas do samba-enredo da Acadêmicos da Orgia, escola que abre os desfiles do dia 3 de março, às 20h. Responsável pela escolha do tema da escola, o compositor, professor de português e de literatura, Maurício César de Castro, o Mamau, me disse que não foi difícil construir a letra, já que Oliveira Silveira era mais do que um mestre: era e ainda é um ídolo. Pois olha, o ídolo deve estar muito feliz, na dimensão em que se encontra, vendo a menção neste samba:
Acadêmicos da Orgia exalta Oliveira Silveira, o Poeta da Consciência Negra
Epaô babá! Acadêmicos da Orgia
A verde e branco traz sabedoria
No batuque do tambor vem exaltar Oliveira Silveira é luz de Orixá.
Encontrei no poeta a inspiração nas minhas origens a razão
Do Rosário do Sul para o navio negreiro combatendo as injustiças sociais.
Mestre, líder, guerreiro na luta por direitos iguais. Banzo, suor e lágrimas conta aos pretos a verdade, não há de morrer o ideal de liberdade.
Treze de maio é ilusão
Não vão calar a nossa voz
Vinte de novembro em redenção
Zumbi resiste em cada um de nós.
Raiz gaudéria na literatura
quilombo das palavras em revolução. Arte popular cultura, cadernos negros, revista tição. Semba no roteiro dos tantãs axé de Ogum com Iansã, ancestralidade do seu povo. Moçambique e roda de jongo…
Ifé num cortejo real na rua da praia consciência…
brava resistência presente no meu carnaval.
Que tal?
Ah, se você chegou até aqui e está percebendo que falta muito conhecimento sobre o tema, deixo de presente um link para as aulas permanentes, idealizadas pela professora Sátira Pereira Machado, juntamente com Maria da Graça Gomes Paiva, professora aposentada. O curso é on-line e permanente e traz uma abordagem introdutória sobre a vida de Oliveira Silveira, sua obra e consciência em torno da negritude.
Só clicar e se esbaldar! Aproveite!
Oliveira Silveira: poeta da consciência negra brasileira
Revisão: Rodrigo Bittencourt
Foto da Capa: reprodução Globoplay/RBS TV