A maneira como tenho criado meus textos por aqui acontece da seguinte forma: alguma frase me atravessa ao longo da semana, eu a elejo como semente inicial do que virá a ser o texto e escrevo a frase gatilho nas notas do meu telefone. O que escrevi essa semana foi: “Meu novo prazer é o ‘não entendi’. Não sei nada sobre isso”. Pensei sobre aa dúvidas, sobre perguntar mais “como assim?” para quem me conta ou explica algo. Quem trabalha com a psicanálise, como eu, já sabe que esse é um costume característico do nosso fazer, nunca tomar nenhuma frase como entendida, mas na vida cotidiana não é bem assim que acontece.
Estamos vivendo tempos de muitas certezas e poucas dúvidas. Todo mundo tem certeza de tudo e o pior: quer impor sua certeza ao mundo para validar o que acredita. Então, na manhã em que me sentaria para escrever o texto me deparei com um vídeo de uma premiação que Jane Fonda (foto da capa) recebeu em um Globo de Ouro. A fala dela parecia ter vindo exatamente responder minhas frases do telefone. Ela contava de sua história de vida, do trabalho e de como percebeu que perguntou poucas coisas a colegas que admirava, diretores e cineastas com quem viveu e nunca parou para perguntar “o que é fazer cinema para você?”, “o que você acha do cinema?”. Também fala que perguntou poucas coisas a seu pai, o também famoso Henry Fonda. Lembrei-me do quanto já me arrependi de ter perguntado tão poucas coisas aos meus avós que passaram pela II Guerra Mundial e fugiram da Polônia, perdendo absolutamente toda a sua família. Queria ter perguntado mais, mesmo que as poucas dúvidas que eu tenha conseguido expressar nunca tivessem sido sanadas. Por trauma e silenciamento, mas também por falta de informação mesmo.
Nossa vida banal e descartável parece nos convocar cada vez menos a assumir nossas ignorâncias, que, em contrapartida, são cada vez maiores. Ninguém admite não saber, poucas pessoas ainda teimam em soltar um “como assim?”, “Não sei nada sobre isso, me conta?” Como escrevi nas minhas notas do celular, o prazer do não entendi virou um fardo intolerável, porque cutuca nossas fragilidades e insuficiências. Por outro lado, estamos perdendo a satisfação de assumir o desconhecido e então ter alguém investido em nos contar, dedicado a nos informar. Informar é estar interessado e envolvido. O outro lado da moeda também me parece progressivamente pouco e cada vez menos explorado: quem nos pergunte sobre nós, quem nos indague, quem não tome uma resposta como dada ou quando a receba se pergunte e nos pergunte “e como tu se sente com isso?” Sorte daquele que já viveu o prazer de perceber-se foco total do interesse do outro, com uma postura e um olhar voltado àquela interação, à troca. Isso acontece (ou deveria acontecer) em consultórios de psicanálise, mas podia estar acontecendo bem mais em nossas relações cotidianas.
Meus textos aqui talvez sejam perguntas que, ao serem feitas por mim a mim mesma sem trégua, faço a quem me lê também. Aliás, quero ser lida, quero ser percebida, desvendada para abandonar a venda e enxergar mais longe, enxergar melhor. Eu proponho a vocês que me leiam a adotarem mais essa postura que tenho me desafiado a progressivamente assumir cada dia mais para além das paredes do consultório e da sala de aula. A frase com a qual Jane Fonda encerra seu discurso e que talvez resuma esse texto e meu momento de vida “Faça perguntas. Permaneça curioso. É muito mais importante estar interessado do que ser interessante.”
Um viva à dúvida. Aliás, talvez não à toa a palavra dúvida termine com VIDA.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube
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