Ninguém é dono do planeta. Qualquer posse ou propriedade é o resultado de um determinado processo histórico. São processos que se fazem ao longo de dezenas, centenas de anos. Já nascemos dentro deles. E, como não presenciamos sua origem, tomamos como algo que sempre existiu. Como algo que é. Não como algo que se formou.
O mesmo vale para os valores, os costumes, os modelos de pensar, de falar, de sentir. O amor romântico tem toda uma história tanto material quanto simbólica. Está ligado à posse, olha ela aí de novo, ao patriarcado, ao lugar do homem e da mulher numa determinada organização social. Organização que também é histórica, o que quer dizer que é transitória.
Em cada micro-tempo, micro se comparado ao período geral em que os humanos habitam essa birosca chamada Terra, a organização social, com suas defesas de territórios, de valores, de imposturas, se dá por guerras, sejam elas declaradas, com uso de armas, ou guerras que se sublimam através de leis, de palavras, de justificativa de discurso para garantir o lugar social de cada um.
Pregar a harmonia muitas vezes é uma maneira educada de dizer para que se fique tudo como sempre foi. Sem que aqueles que se sentem prejudicados pela ordem do tempo avancem e tirem do lugar os que se sentem abençoados por uma justiça divina para usufruírem do bom e do melhor.
Deus também é um signo que vale algo num determinado tabuleiro. Como o rei, a rainha, o bispo, o peão. Em nome de Deus, já se queimou na fogueira, se fez guerra santa, se ganhou eleição. E tem ainda o Diabo, o demônio pra funcionar como ameaça e intimidação. Uma floresta de símbolos, personagens, frases prontas, comportamentos pré-cozidos a guiar as cabeças.
Ninguém, por mais arqueólogo da formação dos conceitos e pré-conceitos, está fora dessa trama. Mas saber disso permite, na medida do possível, ou do impossível, tomar um certo distanciamento para perceber o subsolo dos discursos.
Sabendo também de antemão que todos os discursos são parciais e imperfeitos. Que toda fala esbarra numa ação. Que toda ação é limitada. Que todo limite é uma prova da precariedade do ser humano. Diante disso, vamos ao segundo turno das eleições no Brasil.
E termino aqui com um haicai do meu novo livro Dinastia Mim, editora Bestiário, 2022:
o país em destroço
aqui em casa, vou
consertando o que posso