Eu vivo o pretérito do futuro, que é muito mais do que simplesmente o presente. Eu vivo de uma mania estranha de apreciar antecipar milésimos de segundos de acidentes, quedas, colisões. Como se fosse uma grande pretensão de antecipar catástrofes. Mas é mais do que isso. Eu gosto de trabalhar com a ideia do segundo que muda um destino inteiro. Aquele exato momento em que entra uma mensagem no celular e que, ao olhar para a tela, estaria desviando o olhar e não atentando para o último degrau da escada e da queda inevitável que me faria quebrar o pé e ter que fazer uma cirurgia. Penso nos dias de repouso em que estaria me lamentando pelo segundo da falta de atenção que acarretou todo o transtorno. Ou então, na faixa de segurança, aguardo a oportunidade de atravessar a via e vejo um carro vindo ao longe e penso que até daria tempo para a travessia, mas por alguma razão que não sei bem explicar nesse dia não me sinto ágil suficiente para a disparada que me levaria ao outro lado. Entendo esse meu tempo celular de resposta, entendo minha lentidão.
Tantas são as coisas que poderiam ser o futuro outro de um pretérito se prestássemos mais atenção. Esses tempos vi um vídeo de um comediante ironizando sobre o mindfulness, essa prática que nada mais é do que estar presente no instante em que se está. Ele colocava que os jovens nas décadas de 80/90 já viviam em mindfulness pela ausência de dispositivos eletrônicos que nos roubam a atenção. Quando esperávamos pelo ônibus, era isso que fazíamos, não havia escapatória. Quando íamos ao banheiro, era isso que fazíamos, apenas. Existe esse fator tecnológico, de fato, mas esse meu exercício ou “brincadeira” quase obsessiva e inevitável que faço em meus dias nem traz esses questionamentos contemporâneos. Comigo mesma, o exercício é de imaginação ou fantasia mesmo. Gosto desse jogo de hipóteses com o tempo. Se naquela caminhada no shopping em que a garota respondia um whatsapp teria ela estado de cabeça baixa enquanto o amor de sua vida cruzava a sua frente, naquele algoritmo da vida para o qual quase não damos importância?
Esse final de semana assisti à peça de teatro “Tudo que sabemos juntos” e, num determinado momento do texto, o ator questiona a parceira de cena e a plateia se já paramos para pensar que nosso campo de visão só atinge um determinado grau de alcance do todo, ao contrário de outros animais que percebem e enxergam mais o ambiente ao seu redor. Ele pergunta: será que pensamos em todo esse cenário que não vemos? Será que imaginamos o quanto ele nos define, nos alteraria caso dele soubéssemos?
Eu estou falando sobre o tempo, sobre o futuro que está guardado no presente disfarçado de passado. Ou seria o passado que vem disfarçado de futuro – como na neurose nossa de cada dia – e convenientemente chamamos de destino? O que não conseguimos antecipar, como eu tentando prever meu pé quebrado e por isso redobrando minha presença em meu corpo ao descer a escada? Que parte minha teme quebrar o pé porque, no fundo, uma fratura e um repouso forçado não cairiam bem, com o perdão do trocadilho infame, nesses dias sempre tão apressados?
Eu vivo o pretérito do futuro que é muito mais do que simplesmente o presente. Eu vivo o desejo de me encontrar no hoje e de achar um caminho suave e em boa companhia. Viver antecipando acontecimentos como uma diversão ficcional pode ser o jeito que encontrei de cuidar de meus dias, ou então simplesmente de achar uma ideia para uma crônica que precisava ser escrita. O que virá agora que ela já foi escrita?
Foto da Capa: Freepik
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