Na semana passada, a Justiça retirou do ar um show de humor do comediante Léo Lins, alguém que só fiquei conhecendo justamente por toda a discussão que essa decisão levantou. O motivo alegado para este ato foram as piadas ofensivas contra minorias como negros, judeus e pessoas com deficiência.
Vou poupar o meu leitor de exemplos das atrocidades que o dito comediante propagava em seu número, mas já adianto, para aqueles que tiveram a sorte de não ter assistido, que Léo Lins chega a fazer piada até mesmo com o assassinato de Marielle Franco.
É nesse nível a coisa.
Como acontece sempre que algum conteúdo é retirado do ar, não são poucos os desavisados – ou mal-intencionados – que ostentam o dedo em riste para acusar ter ocorrido uma censura. Aliás, virou moda no Brasil achar que se pode falar qualquer coisa publicamente, mesmo que esta fala seja criminosa, e se resguardar sob a justificativa da liberdade de expressão.
Sim, todos somos realmente livres para falarmos o que bem entendermos. Só que em geral esse pessoal tão revoltado esquece do outro lado da coisa: ao falarmos o que quisermos, também estamos nos expondo à atuação da lei sobre o nosso discurso. Querendo ou não, somos seres sociais e, assim, estamos todos submetidos à lei que mal ou bem organiza o nosso laço comunal. Ou seja: toda fala proferida publicamente está endereçada ao social, não há como escapar disso.
Simples assim. Ou deveria ser simples assim.
Fato é que alguns comediantes de renome saíram em defesa do tal Léo Lins, inclusive um que foi sempre queridinho do público, o Fábio Porchat.
A alegação é que, se as piadas não produziram nem ódio nem violência, então elas não deviam ter sido tiradas do ar.
Ainda que sempre tenha parecido alguém bastante inteligente, acho que falta ao Porchat um pouco mais de consciência de seus privilégios e uma leitura mais atenta de seu lugar na sociedade.
Fiquei pensando o quanto ainda é fácil não percebermos que a produção e reprodução de ódio contra minorias não se dá somente através de fatos explicitamente violentos, mas que as nossas falas e atos cotidianos já carregam em si toda uma estrutura social que, muitas vezes, nos é invisível.
É um privilégio que esta estrutura segregatória não seja perceptível para alguns, sinal de que ela é consonante com um modo de estar no mundo.
Ao meu ver, foi esse privilégio que tomou conta daqueles que defenderam Léo Lins.
Não seria de se esperar algo diferente de quem sempre circulou pela extrema direita, por exemplo, mas realmente entristece ver figuras como Fábio Porchat, supostamente uma pessoa crítica e esclarecida, tomar partido de um cidadão que claramente se satisfaz com piadas sobre escravidão.
Efeito típico da cultura do espetáculo em que vivemos, volta e meia vamos nos decepcionar com essas pessoas comuns que insistimos em tornar famosas. Inocentes são aqueles que atribuem lugar de modelo de conduta a qualquer celebridade por aí.
E pior: para quem está em lugar de privilégio, como Léo Lins e Fábio Porchat, o “cancelamento” nas redes não é punição: é publicidade gratuita. Os seus nomes ficaram nos trending topics do Twitter e nos feeds de Instagram por dias a fio. Em contraste, pensemos a situação do tapa que Will Smith, um homem negro, deu em Chris Rock na cerimônia do Oscar de 2022: até hoje o ator é ostracizado da cena de Hollywood.
Mas esse papo reacendeu toda uma discussão sobre os limites do humor, tema que sempre me interessou.
Aqui, acho que vale uma distinção inicial: uma coisa é uma fala humorística. Outra, um discurso criminoso.
Em nosso país, o racismo e a xenofobia são crime. Ponto. Aqui não se trata de uma deliberação a respeito da forma ou do impacto da piada: se um show de comédia contém trechos racistas, ele deixa de ser uma manifestação cultural, uma expressão pessoal, para se tornar um veículo de reprodução de ódio, ainda que alguns digam que isso não é algo explícito.
Mas é de implícito em implícito que as estruturas violentas vão se consolidando e se reproduzindo, algo que parece que Fábio Porchat e alguns outros que defendem Léo Lins escolhem não perceber.
Como sabemos, é muito fácil a estrutura social falar através de nossas bocas sem que isso nos soe dissonante. Afinal, somos constituídos e subjetivados nesta cultura que se organiza em torno do homem branco heterossexual que tanto eu quanto Porchat somos. Quando estamos submersos em nosso próprio elemento, ele não nos parece estranho. É preciso que algum fator externo nos provoque estranheza; e também é necessário deixar-se atravessar por estes discursos marginalizados.
Sim, é muito difícil ter os próprios privilégios questionados, mas a melhor alternativa parece ser poder se dar conta do quanto nós reproduzimos valores e concepções que seguem mantendo à parte do jogo social uma parcela grande da população. Do contrário, caso não houver esta constante autocrítica, corre-se o risco da produção de uma lógica de ressentimento.
Ou pior: de aliança com o lado violento.
Uma coisa é fazermos piada quando o rei tropeça na rua e sua coroa cai. Como diz o psicanalista Jacques Lacan, essa cena nos causa riso porque explicita a distância entre o lugar atribuído a alguém e a sua comezinha condição humana. Outra coisa é rir do vassalo que tropica no tapete vermelho que leva à sala do trono.
Alguns entram no castelo pelos portões principais, cercados pela guarda real e pelas pompas monárquicas. Desta vez, talvez teria sido melhor Fábio Porchat ter prestado mais atenção àqueles que só têm acesso ao reino pela porta dos fundos.