O problema da Lia era que ela não lia.
Seu nome não era um nome. Era uma contradição.
Seu sobrenome deveria ser Nunca.
Lia Nunca lê!
Mas era Macedo.
Lia Macedo!
Que não lia mais cedo.
Nem agora.
Tampouco mais tarde.
A gente lembra dela com carinho.
Nas festas.
Nos encontros de família ou com os amigos, quando é preciso puxar assunto para a conversa deslanchar.
– Lembram de quando Lia falou que o chefe a estava assediando? – indago.
– Ela disse: “Meu chefe está me incendiando!” – responde Maria, minha esposa.
– É que a ignorância dela era fogo… – digo.
São muitas as histórias.
Meu amigo Carlinhos Tannenbaum, por quem Lia tinha uma visível queda (se bem que isso era nela talvez o único sinal de inteligência), recorda quando Lia Nunca, ops, quer dizer, Lia Macedo, reclamou de uma dor imensa no nervo ciático:
– Estou com uma dor asiática!
– Mas se o Millôr Fernandes tivesse dito a mesma coisa, falariam que ele inventou uma definição notável para uma dor imensa, uma dor continental – tento argumentar em favor da memória da Lia que nunca lia.
– Mas você acha que Millôr diria que precisava tomar uma injeção de Penosilina? – indaga Maria.
Inesquecível foi o dia em que, em minha casa, apresentei a Lia o meu cliente e amigo Jamelão (1913-2008), inesquecível intérprete de sambas-enredo e de clássicos da MPB, com destaque para Lupicínio Rodrigues.
Foi no início dos anos 2000. Na época, começava-se a falar muito sobre a necessidade de se utilizar os termos corretamente, especialmente quando falamos sobre questões raciais e de gênero.
No quintal da minha casa, Jamelão cantou o samba-enredo da Mangueira de 1988: “100 Anos de Liberdade, realidade ou ilusão”, composto por Hélio Turco, Jurandir da Mangueira e Alvinho.
– Será que já raiou a liberdade? Ou se foi tudo ilusão. Será que a Lei Áurea, tão sonhada, há tanto tempo assinada, não foi o fim da escravidão? Hoje, dentro da realidade, onde está a liberdade, onde está que ninguém viu…
Todos aplaudimos. Comovida, Lia quis que as palmas fossem acompanhadas por palavras. E exclamou para Jamelão:
– Você é o maior cantor afrosemdente do Brasil!
Todo mundo riu, até mesmo Jamelão, que ficou conhecido na história por seu suposto mau humor, mas que na verdade era uma pessoa afável, quando não estava interpretando o tipo criado por ele, para causar, mas que algumas vezes acabava invadindo um pouco o Jamelão real.
Além disso, não dava para ficar bravo com a Lia, que compensava qualquer falta de cultura com seu caráter, simpatia e bondade.
Lia não merecia essa crônica, até mesmo porque, como já disse, não gostava de ler. Merecia é um samba em sua homenagem. Cantado pelo grande Jamelão!
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Eu disse há pouco que o problema da Lia era não ler. Talvez tenha sido injusto ou cedido às tentações dos jogos de palavras.
Tem gente que não lê, mas aprende com notícias de rádios e de televisão. E tem aqueles que não assistem notícia alguma, mas aprendem ouvindo os outros; observando as pessoas, a vida e o mundo.
Além disso, há pessoas que estudaram bastante, mas aprenderam pouco.
Nem sempre pude ensinar o que sei ou penso que sei para os estagiários e estagiárias que trabalharam comigo na Gontof Comunicação. Alguns lembram de mim e até hoje me chamam de forma carinhosa. Quando são promovidos ou entram em um novo emprego, escrevem:
– E tudo começou com você, mestre!
Tem aqueles a quem mal pude prestar atenção, deixei de perceber o potencial ou esperei que me ajudassem mais do que poderiam, quando estavam ali para aprender, enquanto eu resolvia problemas, como dívidas, equipamentos quebrados, falta de clientes ou mesmo questões pessoais, como problemas de saúde e divórcio.
Com alguns aprendi muito. Apontaram vícios de um “velho jornalista”, ensinaram novas linguagens e mesmo diferentes técnicas de se abordar um tema.
Mas voltando ao “tema central” da crônica, houve uma ex-estagiária da assessoria de um conhecido meu, que depois atuou na grande imprensa. Um dia, foi trabalhar na Gontof. Após pouco tempo, percebi que, digamos assim, primava por uma certa falta de conhecimento geral.
Uma vez, enquanto tomávamos café, perguntou em que países estive quando viajei como mochileiro aos 23 anos, que era exatamente a sua idade à época.
– Foi um mix de passeio e trabalho. Para conseguir viajar, em vários países fui agricultor, maleiro, pizzaiolo, garçom e trabalhador de fábrica. Fiz até embaixadinhas nas ruas e estações de metrô para sobreviver e viajar. Estive em Israel, Egito, Grécia, Turquia, Itália, Espanha, Portugal, França, Suíça, Luxemburgo, Suécia, Dinamarca, Noruega, Holanda, Bélgica, Inglaterra e Alemanha Ocidental. Quando ia para a Alemanha Oriental, percebi que seria difícil encontrar trabalho, que estava muito cansado e era a hora de retornar ao Brasil.
Denise respondeu:
– Sempre fazendo piadas!
– Como assim? – indaguei!
– Duas Alemanhas!
– Claro que tinham duas Alemanhas. A Ocidental e a Oriental; a capitalista e a comunista. A da NATO e a do Pacto de Varsóvia!
Ela não se deu por vencida:
– Claro! E no passado também existiam duas Argentinas! Duas Noruegas! Duas Franças! Duas Austrálias. Duas Coreias! Duas…
Tive que interrompê-la:
– Não só existiam duas Coreias, como ainda existem! Também há dois Congos! Assim como, de certa forma, ainda existem duas Irlandas, duas Chinas e duas Guianas.
Ela ficou me olhando, sem ter certeza se deveria acreditar no que eu estava falando. Certamente era verdade. Deveria saber que eu nunca seria irônico com alguma falta de conhecimento.
Adoraria contar aqui que ela teve vida longa na Gontof, que venceu na profissão e até hoje trabalha em algum jornal, revista, emissora de rádio ou de televisão, portal, sites, blog ou podcast, seja como contratada ou como freelancer. Ou que é uma conhecida influencer.
Pesquisei há pouco nas redes sociais e vi que agora ela vive na Suíça, onde trabalha como camareira em um hotel.
Só não descobri ainda se na Suíça do Norte ou na Suíça do Sul. Na capitalista ou na comunista…
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As pessoas com quem convivemos, seja hoje ou no passado, ajudam o trabalho do cronista.
Mas não é apenas para criar.
Tornaram e tornam, com suas peculiaridades – qualidades e “defeitos” – a vida mais saborosa.
Inspirado por elas e pelas situações vividas, criei um personagem para usar em algumas situações.
Esse personagem falaria ditados populares de maneira errada, seja na forma, seja no conteúdo.
Exemplo. Estamos jantando com um casal de amigos queridos e Maria reclama do excesso de trabalho.
Eu digo:
– Quer moleza! Senta no meu p…!
Os amigos riem.
– Só você!
Alguém comenta na festa de antigos amigos da escola que assistiu a todos os sete filmes da franquia “Missão Impossível”…
Respondo:
– Não vi nenhum. Não curto o Tom Cruzes…
Se o tema são as viagens espaciais e a conquista do espaço, conto que meu astronauta predileto é o Louis Armstrong.
E se percebo que os interlocutores são cultos, até exagero:
– Acho lindo quando ele olha para nosso planeta e exclama: “A Terra é Azul”!
Decidi parar de brincar.
Maria deu o sinal de alerta.
E se aos poucos as pessoas começarem a acreditar e a falar de ti como da saudosa Lia Macedo? Se começarem a acreditar que você não sabe utilizar os provérbios!
Minha esposa, como sempre, tem razão. Parei de vez de dizer essas bobagens, para preservar o meu bom nome.
Afinal, uma boca fechada não move moinhos!
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Foto da Capa: Gerada por IA.