Um dos meus maiores medos sempre foi as decisões injustas. Ver uma injustiça ser dada como certa em um tribunal. Toda vez que eu vejo um filme que tem esse tema, sofro junto com o protagonista que tem de provar sua inocência contra tudo e contra todos. Ainda mais quando se sabe que finais felizes são comuns em Hollywood, mas nem sempre acontecem na vida real. Na posição de ativista pelos direitos das pessoas com deficiência, não foram poucas as vezes em que ouvi relatos de injustiças e discriminação sofridas por autistas ou por suas famílias, sem que tivessem a quem recorrer.
Ao passar a viver e pesquisar o autismo, como pai atípico, mas também como advogado, tenho medo e indignação daqueles magistrados e operadores do Direito que enxergam e tratam as questões jurídicas a ele relacionadas não com base nos princípios das leis e do Direito, mas com as lentes do preconceito, dos “achismos” e do capacitismo. Apenas algumas semanas após a descoberta de que Amir era autista, ele foi excluído da escola onde cursava o Ensino Fundamental, sob a alegação de mau comportamento. Ou, como dizia a escola, teve sua matrícula cancelada.
Quando buscamos socorro junto a autoridades policiais, jurídicas e judiciárias, constatamos o desconhecimento generalizado que cercava o autismo e as normas referentes à inclusão escolar de pessoas com deficiência. Mas o que mais me doía na busca de reparação ou punição por esse dano sofrido era chegar às instituições que deveriam proteger e ouvir comentários como: “Será que não é melhor mesmo ele sair dessa escola para não sofrer bullying?”. Também não esqueço o comentário informal feito por um dos desembargadores durante uma das sessões que julgou o processo de danos morais que movemos (e vencemos) contra a escola: “Se for assim, as escolas vão virar hospitais.”
Esses medos e lembranças foram reavivados na última semana, ao escutar comentários em tom jocoso de uma autoridade de um Tribunal Superior, ao falar sobre autismo, autistas e terapias.
Conforme noticiado pela imprensa, o ministro Antônio Saldanha (foto da capa), do Superior Tribunal de Justiça (STJ), se referiu ao Transtorno do Espectro Autista (TEA) como um “problema” e criticou as clínicas especializadas, afirmando que elas oferecem um “passeio na floresta” aos pacientes. Durante o Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde, ele ainda declarou que é uma tranquilidade para os pais saber que seus filhos passam de 6 a 8 horas em tratamento, embora isso envolva custos e diferentes abordagens, incluindo a médica e a pedagógica.
Além disso, o ministro também mencionou que qualquer pessoa pode ter “fator de autismo” e que o autismo é um espectro amplo, o que contribui para o surgimento de muitas clínicas dedicadas ao tratamento do TEA.
As falas foram objeto de repúdio generalizado, a Associação dos Juízes do RS (AJURIS) manifestou sua reprovação às declarações proferidas pelo excelentíssimo senhor ministro do Superior Tribunal de Justiça Antônio Saldanha no dia 22 de novembro, durante sua participação no Fórum Nacional de Saúde (Fonajus). Também fez questão de ressaltar que “as palavras do ministro não refletem a posição institucional do Poder Judiciário”.
O repúdio foi engrossado por inúmeros grupos e associações de autistas e suas famílias, entre eles o “Magistratura Atípica”, constituído por magistrados atípicos e/ou que são pais atípicos, de todo o Brasil. A nota de repúdio publicada por eles diz que “com todo respeito, para além de discriminador e, portanto, capacitista, o conteúdo das declarações revela uma total falta de conhecimento acerca do conceito de autismo” no que, com razão, definem como uma violência institucional e uma violação aos direitos humanos.
O capacitismo, o preconceito contra as pessoas com deficiência, manifesta-se quando se trata o autismo e as demais deficiências como um “problema”, conforme feito pelo Ministro. Como diz a citada Nota de Repúdio, “ao contrário do afirmado pelo Exmo. Sr. Ministro, não é um problema, mas sim uma deficiência, inclusive assim definida na lei 12.764/2012, que, por sua vez, vem a ser uma característica, uma condição humana.” Ou, como disse a jornalista e mãe de uma criança autista Johanna Nublat em seu blog Vidas Atípicas: “Autismo não é ‘um problema de cognição’. Trata-se de um transtorno do neurodesenvolvimento.”
O ministro, ao continuar seu discurso, comparou terapias oferecidas a autistas como um “passeio na floresta” aos pacientes. Assim, como disse a Nota da “Magistratura Atípica”, revelou falta de conhecimento e menosprezo pela terapia ABA, baseada em análise do comportamento, “tanto quanto, ao que parece, à utilização e eficácia de terapias como a Musicoterapia e a Equino ou Equoterapia por outras pessoas com deficiência.”
A fala do ministro também toca em um preconceito doloroso que precisamos enfrentar: a ideia equivocada de que pais de crianças autistas veem seus filhos como um “problema” do qual querem se livrar. Vivenciei isso diversas vezes. Sempre que meu filho encontrava alguma dificuldade em suas atividades, as pessoas rapidamente nos culpavam, alegando que ele “não estava preparado” ou que o inscrevemos apenas para nos “livrar” dele.
Eram raros aqueles que reconheciam as falhas dos locais ou das pessoas que o recebiam. Mais raros ainda eram os que percebiam nosso esforço em proporcionar novas experiências para ele. Assim como nas palavras do Ministro sobre “buscar tranquilidade para os pais”, fui tantas vezes acusado dessa mesma intenção – tanto por pessoas próximas quanto por desconhecidos, por aqueles que conheciam nossa história e até por quem nunca conviveu conosco. Todos eram muito rápidos em nos condenar por uma suposta negligência ao não querer submeter um filho à segregação e ao isolamento.
De forma bem equivocada, o ministro também mencionou que qualquer pessoa pode ter “fator de autismo” e que o autismo é um espectro amplo, o que contribui para o surgimento de muitas clínicas dedicadas ao tratamento do TEA.
É preciso dizer que os serviços, públicos ou privados, ainda estão muito abaixo da demanda real. É mais fácil para autistas e seus pais passarem horas nas filas dos serviços públicos ou meses à espera das consultas e serviços mais básicos do que em terapias ou passeando na floresta.
A afirmação desrespeitosa de que qualquer pessoa pode ser autista, sob o argumento de que o espectro é amplo, tem origem em um pensamento negacionista sobre o aumento nos diagnósticos de autismo nos últimos anos. Quando novos estudos apontam esse crescimento, o termo “epidemia de autismo” costuma surgir, mas é enfaticamente rejeitado por especialistas, sendo mais associado a teorias conspiratórias do que a evidências científicas.
A realidade ignorada por esse discurso é que temos uma maior compreensão do autismo hoje. Com isso, os critérios de diagnóstico foram atualizados e os profissionais de saúde hoje são mais capacitados para identificar o autismo em suas diferentes manifestações. A introdução do conceito de “espectro autista” foi particularmente importante, pois reconheceu que o autismo se apresenta de diversas formas – muitas das quais não eram anteriormente identificadas como parte da condição. Isso naturalmente levou a um aumento no número de pessoas diagnosticadas, sem significar um aumento real na incidência do autismo.
Tudo isso me faz pensar na expressão “problema cognitivo”, utilizada mais de uma vez na fala do ministro. Afinal, a cognição, entendida como a capacidade de processar informações mediante a percepção e o conhecimento acumulado, revela-se comprometida quando preconceitos e teorias conspiratórias se infiltram constantemente nesse processo. Quando tais problemas cognitivos são observados em pessoas responsáveis por tomar decisões importantes e proteger direitos fundamentais, o cenário ultrapassa o assombroso e alcança um patamar verdadeiramente assustador.
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Foto da Capa: Ministro Antônio Saldanha no Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde / Reprodução do Youtube