Esse é o quarto dos meus 13 anos. Sempre que vejo essa foto agradeço por tê-la tirado, meio sem querer, com máquina fotográfica bem analógica no ano de 1991. Nunca imaginei como ela seria importante hoje, 33 anos depois. Eu tenho uma lembrança absolutamente vívida desse quarto dos 13, cada objeto dessas prateleiras, cada foto e recado colocado no quadro de cortiça atrás da minha cama. Mas não sei se lembraria tão facilmente se não fosse por essa foto. Olhando agora, lembro da luminária, lembro desse estojo, lembro de tudo, lembro de como amava meu quarto, meu canto. Nessa época, gostava de brincar que meu quarto era meu apartamento e que eu já era uma adulta que morava sozinha. Chegava da escola, percorria o caminho da casa como se fosse um edifício, cumprimentando vizinhos imaginários e entrava no meu quarto/casa e trancava a porta.
Fazia muito tempo que não lembrava dessa foto, único registro visual desse cômodo que eu amava tanto e que refletia tanto a menina que fui. Lembrei dela quando, há algumas semanas, repostei no Instagram um vídeo sobre uma exposição do fotógrafo britânico James Mollison intitulada “where children sleep” (onde as crianças dormem). Esse trabalho retrata quartos ou lugares que crianças de diferentes lugares do mundo vivem ou dormem. Rapidamente é possível perceber as brutais diferenças de quartos lindos e cheios de brinquedos de uns para lugares abertos, insalubres e coletivos para outros. Todos os lugares onde crianças dormem. Alguns nem deveriam ter esse fim. Sendo assim, é um projeto que deixa claro as diferenças sociais e a desigualdade entre continentes e culturas.
Crianças precisam de espaço para existir e ser. Espaço para dormir, para imaginar, brincar, fantasiar. O espaço psíquico que será tão precioso para o resto de nossas vidas só se compõe a partir de espaços que a vida externa também precisa proporcionar. Isso não significa que crianças com quartos privilegiados como o que tive – onde não precisava dividir espaço com meu irmão, onde eu podia expressar através das minhas escolhas de como decorar, guardar meus brinquedos e meus materiais, a menina que eu vinha me tornando – necessariamente terão espaços psíquicos também privilegiados ou privados, onde entendam que sua mente é sua, que seus pensamentos lhe pertencem e são válidos. Crianças precisam de espaço na mente de seus guardiões, pai e mãe ou quem exerça esses papéis. São esses espaços os mais preciosos, nos quais, depois de serem abrigos por algum tempo, prepararão o terreno para que essa criança construa simbolicamente seus espaços mentais e futuros espaços geográficos, sociais e políticos.
Mas isso é tudo teoria psicanalítica. A realidade do espaço concreto e material também viabiliza condições emocionais e físicas para o desenvolvimento. Lembrei de outro filme que fala sobre isso e que mereceria outro texto só sobre ele, “O quarto de Jack” onde o mundo mental de uma criança, se bem-cuidada e maternada como o personagem foi, pode ir muito além de apenas quatro paredes. Se cada um pudesse, a cada tanto, reabitar mentalmente seus quartos de infância, os possíveis, os reais e os imaginados, para buscar nele um refúgio em tudo que se desejou e se fantasiou para uma vida, talvez encontrássemos respostas para perguntas que nem ainda temos muita clareza no presente.
Decidi digitalizar essa foto do meu quarto dos 13 para reproduzi-la em papel, multiplicá-la em mim, buscar essa exata disposição de brinquedos, canetas e pôsteres para me ajudar a envelhecer como quem vive a adolescência, sem entender muito as mudanças hormonais que se impõe com o tempo, o desejo de solidão ao mesmo tempo de um desejo de busca de iguais e de um amor verdadeiro. Quatro paredes para dormir, brincar e sentir-se seguro é um privilégio. Quatro paredes exclusivas, que não precisam ser compartilhadas com uma família toda, então, mais privilégio ainda. Toda criança deveria ter direito a suas quatro paredes, à privacidade, a poder fingir que seu quarto é sua casa, porque é.
Que mais crianças mundo afora possam ter direito a quartos mentais, mas no mínimo físicos e arquitetônicos onde esse espaço seja preservado, resguardado e garantido como direito. E que nossas mentes sejam quartos seguros para crescermos, podendo fechar e trancar a porta para o mundo de vez em quando.
Fotos: Acervo da Autora.
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