Conforme publicado no “The New York Times”, no dia 30 de novembro deste ano, Elon Musk, em uma apresentação da Neurallink, divulgou que pretende um dia conectar o cérebro humano a um computador, para que pessoas com paralisia possam recuperar seus movimentos, e para que pessoas cegas possam enxergar. Segundo Musk o dispositivo tecnológico a ser instalado no cérebro humano daria a visão até mesmo para pessoas que nunca enxergaram antes, o que foi visto com um certo ceticismo por alguns médicos. Informou inclusive que já foi dada a entrada na documentação exigida pela “Food and Drug” Administration (FDA) para que possa executar tais procedimentos.
Essas pesquisas em humanos que envolvem a implantação de dispositivos tecnológicos podem parecer uma grande novidade para a maior parte da população, mas, segundo a matéria acima referida, diversas outras empresas já obtiveram a aprovação do FDA para estudar a implantação de dispositivos similares em humanos, que tiveram seus cérebros conectados a um pequeno computador instalado nas suas cabeças. A matéria informa que já no ano de 2004, quase três dúzias de pacientes com paralisias ou outras deficiências foram testados e conseguiram realizar alguns movimentos.
É também muito conhecido o caso do ciborgue Neil Harbisson, que só enxergava em preto e branco, por ser portador de acromatopsia, uma doença autossômica que faz com que as pessoas não distingam as diversas cores. Pois com o auxílio de um sensor implantado no seu cérebro e de uma câmera, ele conseguiu enxergar vários tons de cores.
Em 2019 também foi noticiado com muita repercussão o caso de um tetraplégico que com o auxílio de dois implantes instalados na superfície do seu cérebro, e com a ajuda de um exoesqueleto controlado pela sua mente, conseguiu mover seus braços e pernas.
Um outro tipo de tecnologia que já existe é a edição genênica CRISPR/Cas9 (clustered regularly interspaced short palindromic repeats), que possibilita edição das células de linhagem humana (ovócitos e espermatogônias) e, por conseguinte, a prevenção e a cura de doenças genéticas.
Importante salientar que a nanotecnologia vem sendo utilizada na elaboração de vários produtos, incluindo medicamentos, e quem sabe possa estar ou vir a ser utilizada como mais uma tecnologia transhumanista.
Fiz essa narrativa de fatos, que parecem saídos de um filme de ficção científica, para facilitar o entendimento do que trata o transhumanismo e os desafios que essa nova realidade traz para o campo da ética, da moral, da biologia, da dignidade da pessoa humana e do direito.
O que é transhumanismo
Sob o ponto de vista filosófico, o transhumanismo já teve diversos entendimentos, mas, face ao atual desenvolvimento tecnológico, nos dias de hoje pode ser entendido como um movimento que busca aprimorar a espécie humana pela utilização da ciência e da tecnologia causando o surgimento de seres pós-humanos, com mais capacidades, por exemplo, maior saúde, inteligência, memória, força, expectativa de vida.
O transhumanismo também abrange novos projetos econômicos, sociais, institucionais, culturais, e o desenvolvimento de novas técnicas psicológicas, o que lembra em alguns aspectos “O admirável mundo novo”, romance escrito pelo Aldous Houxley, que retrata uma sociedade em que as pessoas são biologicamente criadas e condicionadas psicologicamente para desempenharem determinados papéis.
Para os transhumanistas, a espécie humana está sempre em evolução, e com o uso de tecnologias haveria a libertação da raça humana das suas restrições biológicas.
Considerando que o acesso a tais tecnologias é muito caro, isso obviamente tem sérias implicações éticas, morais e jurídicas, ainda mais em um mundo tão desigual, em que poucos países controlam a riqueza das nações, e que os ricos estão a concentrar cada vez mais o capital e os demais fatores de produção em suas mãos, em detrimento das populações mais pobres.
Somente para se ter uma ideia das implicações éticas que surgem, imagine como esses seres “em teoria” superiores, modificados geneticamente para serem mais capazes, mais inteligentes, mais fortes e saudáveis, e ainda por cima com os cérebros ligados a centrais de inteligência artificial, enxergariam a nossa geração de simples mortais obsoletos, e com uma memória que, conforme o tempo avança, vai ficando cada vez mais combalida.
Por outro lado, como seria a qualidade de vida dessas primeiras pessoas modificadas geneticamente, presas a um computador, ou com dispositivos implantados em seus corpos? O que aconteceria com elas se um experimento ou procedimento desse errado? Os cientistas as manteriam presas em um primeiro momento, como ratinhos de laboratórios? Seriam dissecadas para melhor analisar os efeitos dos tratamentos, como fazem os cientistas com animais? Poderiam reproduzir? Seus filhos teriam liberdade? Seria permitido a eles que se reproduzissem? Quantas gerações seriam necessárias para se averiguar as consequências das alterações genéticas a longo prazo?
Considere também a reação da sociedade quando esses seres pós-humanos começassem a aparecer e a serem reconhecidos. Não é difícil imaginar que muitos fariam tudo para destruí-los. Provavelmente fossem chamados até mesmo de “filhos de satanás”, hereges, mutantes, monstros, aberrações. Como seria competir em um emprego, em uma seleção, com alguém que tem uma inteligência artificial ligada ao seu cérebro, mais neurônios, melhores sinapses?
O mundo do direito em razão dessa nova realidade
O direito é uma decorrência de diversos fatores que o influenciam, sejam eles fatores naturais, sociais, científicos, culturais ou históricos. E é quando fatos acontecem e se tornam relevantes em uma sociedade que o direito é normatizado, seja por regulamentos, leis, declarações e tratados internacionais etc.
Como essas tecnologias que somente víamos acontecer nos filmes de ficção já são uma realidade, e a cada dia estão mais presentes e a se desenvolver com maior rapidez, o mundo do direito precisa agir com celeridade para evitar que procedimentos que atentem contra a dignidade da pessoa humana e prejuízos intergeracionais imensos venham a ocorrer.
Com relação ao transhumanismo ainda há pouquíssima discussão entre os países e um número mínimo de acordos e legislações a respeito.
Vale salientar no campo da engenharia genética, a Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e Dignidade do Ser Humano no que se refere à Aplicação da Biologia e da Medicina, conhecida como a “Convenção de Oviedo”, que já foi ratificada por 29 (vinte e nove) países europeus, que visa estabelecer um padrão mínimo comum de proteção da dignidade da pessoa humana diante da biomedicina. Infelizmente nem o Reino Unido, nem a Alemanha assinaram a convenção. Nos Estados Unidos e na Inglaterra foram estabelecidas diretivas que tratam dos aspectos éticos e de segurança biológica referentes à edição gênica.
Ainda que não existam muitos tratados, leis, ou regulação a respeito, há uma percepção em boa parte da comunidade científica mundial da necessidade de cautela na implementação de pesquisas clínicas, principalmente no que se refere ao tratamento de células de linhagem germinativa.
A este passo, vale destacar que quando a edição gênica em humanos começou a ser realizada, essa técnica estava restrita à linhagem de células somáticas, que são aquelas que formam os tecidos e órgãos do corpo humano e, portanto, as alterações genéticas não se perpetuavam nas gerações seguintes. As células germinativas que impactam os descendentes do indivíduo não estavam sendo modificadas. Com relação a modificação gênica de embriões humanos acreditava-se haver um consenso de que não poderiam ser utilizados para a reprodução.
No entanto, em 2018, um cientista chinês, da universidade de Ciência e Tecnologia do Sul, em Shenzhen, informou ao mundo que os primeiros bebês geneticamente editados haviam nascido, que ele havia modificado os embriões de duas irmãs gêmeas para impedir que elas contraíssem o vírus HIV, e que elas nasceram saudáveis. Isso gerou muita revolta no mundo científico, pois não se tem como saber que consequências essa alteração genética poderá trazer para as meninas e para seus descendentes.
No Brasil, a lei de Biossegurança veda expressamente a utilização de engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano.
Como a utilização dessas tecnologias em humanos no Brasil é algo ainda incipiente, e é proibida a modificação genética de embriões humanos, existe pouca ou nenhuma jurisprudência nos nossos tribunais referentes a elas. Fiz uma pequena pesquisa, mas não encontrei nada especificamente sobre elas.
Todavia, concordo com a doutrina que com relação a responsabilidade civil pelos problemas decorrentes das intervenções genéticas transhumanistas ou de intervenções para o implante de tecnologias que visem o aprimoramento ou melhora do paciente, caberá ao agente interventor a obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, pois essas intervenções, por sua natureza, trazem grandes riscos para o indivíduo. Essa responsabilidade persistirá ainda que as intervenções sejam gratuitas, pelo alto risco que trazem para a pessoa submetida a tais procedimentos.
Um ponto que acredito causará muito debate nos tribunais é se o consentimento voluntário de um paciente será suficiente para afastar a responsabilidade dos agentes que implantaram as tecnologias transhumanistas. Isso provavelmente dependerá de cada caso concreto, do nível de informação do paciente, se a intervenção decorreu do pedido do próprio paciente, se houve algum erro na execução dos procedimentos.
Quero deixar claro que sou a favor da utilização das tecnologias acima mencionadas para curar doenças, evitar problemas, melhorar as condições de vida das pessoas que tenham alguma deficiência ou dificuldade, mas que considero imprescindível que haja um debate sério na sociedade sobre as consequências éticas, morais e jurídicas envolvidas quando a utilização dessas tecnologias ultrapassarem algumas barreiras, que precisam urgentemente ser delimitadas.