Antes de vocês aí ficarem bravos comigo, lembrem-se de que eu sou um cinquentão refugo de um outro mundo moribundo e ignorem minhas palavras se quiserem, mas eu realmente gostaria que se pensasse nelas, nem que por alguns instantes. Quando faço esse adendo de que sou antigo, é porque sou anterior ao surgimento de dois conceitos contemporâneos quando se fala da relação entre a humanidade e os seus animais de estimação.
Para começar, sou de antes de surgir essa categoria para mim algo inusitada de “pai de pet”. Sim, o companheiro de quatro patas já era na minha época considerado uma “parte da família”, mas ainda era a época em que valia o “cada qual no seu quadrado”. O cachorro era o companheiro de aventuras e de horas intermináveis de alegria, mas ainda dormia na casinha no pátio, não na residência familiar – claro, essa era uma configuração talvez específica das cidades do interior em que cresci, locais em que prédios de apartamentos eram coisa rara e todo mundo, independentemente da condição social, tinha um pedaço de terreno em volta da casa para servir de pátio.
Imagino que seja um efeito da maneira como a sociedade evoluiu o fato de hoje termos tantas pessoas declarando que o vínculo com seu animal de estimação é equivalente a uma ligação sanguínea ou a uma adoção humana. Vivemos hoje mais isolados, as cidades cresceram, os espaços diminuíram (outra luta de classe, aliás, que vem sendo escamoteada como se não existisse, mas um demarcador contemporâneo bastante nítido é que hoje quase nenhum jovem de classe média consegue comprar um apartamento), as comunidades periféricas têm grandes concentrações demográficas e uma burguesia que parece estar aí desde as capitanias hoje investe em “bairros privativos” com áreas de extensões obscenas.
Eu, particularmente, não me incomodaria com o rótulo “pai/mãe de pet” se não fossem dois fatores: o primeiro é termos aí mais um capítulo da abastardização da língua portuguesa com esse “pet” horroroso em lugar dos bons e velhos substantivos que sempre usamos, como “animal de estimação”, “cachorro”, “gato” ou até mesmo o singelo “bichinho”. O segundo motivo é o número surpreendentemente alto de arrombados inconsequentes para quem ser “pai de pet” é uma postura pra compartilhar no Instagram, não uma responsabilidade de fato.
O que me leva ao segundo conceito que não existia na minha infância, mas que hoje é disseminado: a adoção do termo “tutor”. Quando nossos cães Mickey, Fofinha, Chocolate ou o gato Xereta andavam pela casa em que eu morava quando criança em São Gabriel, éramos seus “donos”. Hoje, prevalece o entendimento de que o animal de estimação é um ser vivo e, portanto, afirmar sua posse é impróprio. Ok, também não tenho nada a discutir aí. Só me pego um pouco perplexo pensando se, com essa mudança bem-intencionada, não deixamos de lado um elemento importante da equação: a responsabilidade do humano por trás do animal, seja lá que nome se queira dar, também.
Ataque dos cães
A essa altura, talvez seja ocioso recapitular, dado que o caso foi chocante, teve um impacto muito grande e muita gente já viu: uma servidora pública (foto da capa) parou em um gesto de cortesia para abrir o portão de um edifício no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, para uma mulher que chegava com dois pitbulls. Um dos cachorros atacou a servidora – e o resultado foi ela ser arrastada em plena calçada enquanto um bom número de transeuntes tentava, sem sucesso, fazer o cão cessar seu ataque. Ah, sim, a dona do cachorro não participou das tentativas de contenção porque sofria para tentar controlar o outro pittbull para que ele também não se juntasse à agressão.
O episódio é traumático, mas infelizmente não é inédito. Este ano, em abril, Roseana Murray, escritora com uma longa e reconhecida carreira como autora de livros para crianças e adolescentes, foi atacada por três pitbulls em Saquarema, no Rio, enquanto fazia uma caminhada bem cedo pela manhã. A agressão foi tão brutal que, arrastada pelos animais, ela teve um braço dilacerado e perdeu uma orelha.
Padrões repetitivos
Tanto num caso como no outro, há padrões que se repetem. Tanto o Rio, onde houve o primeiro caso, quanto o Rio Grande do Sul, em que ocorreu o ataque à servidora no Menino Deus, têm legislações expressamente determinando que cães considerados perigosos devem ser conduzidos em condições específicas que incluem o uso de enforcador e focinheira. A lei do RS até mesmo lista os cães incluídos nessa categorização: “cães das raças American Pit Bull Terrier, Fila, Rottweiler, Dobermann, Bull Terrier, Dogo Argentino e demais raças afins”. Nos dois casos, e em vários outros recém-documentados, os cachorros circulavam sem o equipamento devido.
Outra circunstância que se repete nos mesmos dois casos é que os referidos cães já haviam, meses antes de se graduarem em agressores de humanos, se envolvido em ataques a cães menores de outros transeuntes. Nos dois casos, aparentemente, não houve aprendizado pelo susto da experiência.
Debates
Como não poderia deixar de ser, o episódio da servidora (cujo nome não declino porque, bem, a atacada é ela). Até agora sei bastante sobre a vítima, mas não sei nada da mulher que levava os cachorros, então não acho justa essa exposição inversa que resgatou uma série de discussões e questões que se repetem a cada novo episódio dessa natureza. O núcleo central da maioria dessas discussões é um só: o que se deve fazer com o cachorro. Muitos mais radicais falam na proibição pura e simples da criação e da circulação desse tipo de animal. Uma ideia que já me foi mais simpática nos anos 1990, quando casos como esse já eram comuns. Mas da qual eu fui aos poucos desembarcando pelas próprias implicações práticas de que, bem, o que talvez se esteja propondo com isso seja o genocídio da espécie – logo, não, não dá pra ser a favor.
Também tenho minhas dúvidas se uma medida como essa serviria de todo como solução num país como o Brasil, a terra dos vira-latas e onde cruzas de pitbulls com outros cães ocorrem há décadas. Mas alguma coisa precisaria ser feita para garantir no mínimo a punição dura ao “dono” do cachorro – vamos chamar assim para lembrar que, se você é dono, a responsabilidade é sua, e dane-se esse pouco veemente “tutor”.
Os defensores dos animais, por sua vez, sempre vêm a público dizer que a culpa não é do cachorro. Com o que concordo, mas acho que esse argumento meio que mina a questão do “pai de pet” porque… bem, se o seu filho atropelar alguém com o seu carro, há toda uma série de legislações para que você seja responsabilizado. Quanto aos ataques dos cães, a legislação parece permitir mais o enquadramento de maus-tratos e falha no dever de guarda dos animais (digo “parece” primeiro porque não sou especialista na área, e segundo porque foi disso que foram acusados os proprietários dos cachorros que atacaram Roseana Murray). Ou seja: você é um descuidado que sai para a rua com uma máquina de matar com 42 dentes e 200 quilos de torque de mordida sem focinheira e sem enforcador, e quando ele se descontrola e trucida uma pessoa, você é acusado de maus tratos AO BICHO. Me parece insuficiente quando o estrago foi sofrido por um terceiro.
Saber o que fazer com o animal não é bem o grande problema num assunto como esse. Me parece que o grande desafio é criar mecanismos para responsabilizar o animal que conduz o cachorro pela guia…
Foto da Capa: Ataque de pitbull a uma mulher em Porto Alegre / Reprodução de Redes Sociais
Todos os textos de Carlos André Moreira estão AQUI.