Viram a última do Vargas Llosa? Pois é. Eu ainda estava digerindo a penúltima quando, recentemente, ele voltou a ser citado na imprensa dando pitacos de pouco fundamento nos rumos da eleição brasileira, comprovando que, embora seja possível elencá-lo entre os maiores escritores produzidos no século XX e ele tenha uma vaga preocupação de tiozão com “os rumos da cultura e da civilização”, ele estaria muito tranquilo em, não pela primeira vez, associar-se à barbárie para combater qualquer proposta mais à esquerda. As reações vêm sendo tão indignadas que eu acho mais divertido e interessante do que propriamente relevante (Vargas Llosa não vai mudar meu voto e o de ninguém que já tenha se definido; o indeciso padrão não sabe quem ele é; e o direitista mais intelectual que veja nele suas posições legitimadas não percebe que uma afirmação imbecil não é menos imbecil quando proferida por um Prêmio Nobel. Aliás, sou capaz de apostar, com certeza de boas possibilidades, que a maioria dos tuítes de direita reproduzindo a fala de Vargas Llosa veio de gente que nunca havia ouvido falar nele antes da frase, quando mais lido algum de seus livros).
O que acho interessante na questão toda são algumas de suas repercussões colaterais, como a tendência às vezes ingênua e bem-intencionada, às vezes politicamente interessada e um tantinho desonesta, com a qual se levantam argumentos pró e contra o autor e sua obra por conta de suas opiniões políticas. Uma tendência que representa, em última análise, levar questões pautadas por uma visão estreita e até mesquinha para uma extensão que deveria ser mais sofisticada e menos alarmada, a da literatura.
AS DECLARAÇÕES
Llosa andou reiterando agora algo que já havia falado em maio: que acha o atual presidente um palhaço, mas que não votaria na alternativa por estar “associada à corrupção” – pra começar, não faz diferença, Llosa não vota aqui mesmo. Mas seguindo adiante, se votasse, seus argumentos mostram uma cegueira parcial que seria preocupante para um intelectual de sua envergadura se alguma coisa que Llosa tenha escrito fora do âmbito da literatura valesse alguma coisa. Suas análises políticas são pontuadas por idiossincrasias – o que é grande na literatura, mas meio frágil em termos de argumentação quando se está discutindo política a sério. Bolsonaro é só o mais recente dos espantalhos despreparados com os quais um intelectual de direita como ele se satisfaz vicariamente, dado que a direita autoproclamada liberal e moderada não conseguiu eleger alguém com um perfil mais civilizado (como o do próprio Vargas Llosa, que concorreu à presidência do Peru e perdeu para um sujeito ainda mais neoliberal do que ele, Alberto Fujimori. Curiosamente, o argumento da corrupção não foi o suficiente pra Vargas Llosa retirar seu apoio um tempo antes a Keiko Fujimori, herdeira política do ex-rival de Llosa, um presidente golpista, condenado por corrupção com boa parte de sua família, Keiko incluída).
O problema é que, sendo ou não Vargas Llosa um imbecil político, como claramente parece ser tornar à medida que envelhece, a cada vez que essa circunstância é posta em questão parece haver uma deriva automática à conclusão de que essa burrice fundamental também está em seus livros. Outro lado da mesma moeda vem dos desconfortáveis direitistas com propensões intelectuais que admiram sua literatura e se sentem legitimado pelas opiniões de Llosa e precisam, portanto, defender de uma forma até meio patética a sua pessoa. São coisas diferentes. Não se misturam, ou não deveriam, para privilegiar lado algum nesse embate equivocado.
Lá em julho, durante os primeiros pitacos de Vargas Llosa sobre a eleição brasileira, consegui arranjar discussão com dois interlocutores de rede sobre Vargas Llosa defendendo esse entendimento. Um, à direita, elogiava a “coragem e o caráter” de Llosa, o escritor, a figura humana e política. Outro, à esquerda, perguntava-se o que aconteceria com a relevância da obra de Vargas Llosa com ele próprio sabotando-a. São duas opiniões canhestras de torcida de futebol, desinformadas ou retoricamente manipuladas, não importa. Estão, as duas, erradas no sentido mais fundamental – o que não as impede de serem populares, ainda mais hoje em dia.
A QUALIDADE DA OBRA
Primeiro, a obra: é um tanto cansativa essa ginástica que se faz para “cancelar” a obra de um autor a partir de sua biografia. Que façam isso na música pop pra tocar no rádio ou nos serviços de streaming já é meio patético, porque a maioria dos artistas desse tipo de linguagem hoje vendem não apenas a sua música, mas um pacote comportamental e ideológico tão falso quanto uma nota de três reais e tão formulaico e construído a base de pesquisas de mercado e de “controle de danos” quando uma marca de pasta de dente. Não há desculpa para isso na literatura, essa linguagem mais lenta que deveria, ao menos, seguir parâmetros diversos.
Não é difícil encontrar exemplos na história da literatura de autores mais burros que seus próprios livros. O que Knut Hamsun escreve em Fome é mais impactante e pungente do que o seu obituário de Adolph Hitler, no qual está incluída, segundo define seu compatriota Karl Ove Knausgärd “a frase mais terrível de toda a literatura norueguesa”. Peter Händke é o autor de alguns dos melhores livros publicados no século XX. Mas Peter Händke o homem político é um simpatizante do genocida sérvio Slobodan Milosevic. E esses são os exemplos mais óbvios. Suas obras têm mais visão e amplitude do que suas opiniões, embora umas e outras nasçam do mesmo lugar. Por que isso acontece exigiria um exame intelectual que cruzasse filosofia, linguagem, teoria da literatura, um trabalho crítico honesto e minucioso, tudo o que a cultura de manada originária das redes sociais não é. Normalmente esse tipo de cruzada justiceira se estabelece após um ou dois levantarem uma lebre e selecionarem um trecho. O trecho viraliza e logo está todo mundo entendendo, sem ter lido nada mais, que as opiniões de um autor e sua ficção, sua arte, são a mesma coisa e se confundem a ponto de uma “cancelar” a outra.
O CARÁTER DO AUTOR
Tornar a obra artística de um autor um indício de seu caráter é um movimento equivocado seja para atacar a obra, seja para defender o escritor. Como eu mencionei antes, desde que se tornou o esporte da imprensa nacional ouvir Vargas Llosa sobre as eleições brasileiras (por quê? Ninguém sabe), pulularam comparações de leitores à esquerda entre ele e García Márquez, por exemplo, favoráveis a este último por ter continuado “do lado certo” (sua insistência em defender Fidel até mesmo nos últimos anos de seu governo me parece suspeitamente errada para ser o lado certo, mas enfim). Como se suas diferenças pessoais e políticas os separassem também em termos de qualidade literária, o que é uma rematada bobagem, são dois mestres da literatura latino-americana por direito próprio. Embora Llosa, ainda vivo, claramente tenha alcançado alguma espécie de “zênite criativo” e não lança um livro bom há mais de uma década. Mas até aí, Memórias de Minhas Putas Tristes, de García-Márquez, também era lamentável, o que mostra que a questão talvez não seja de política, e sim de cansaço.
Ao mesmo tempo, vi também o pessoal à destra elogiar a “coerência e o caráter e a coragem”, como comentei, de Vargas Llosa. Equívoco ou mentira, você escolhe. Llosa é um romancista com algumas obras impecáveis, como A Casa Verde ou A Cidade e os Cachorros. Mas é um caráter contraditório, no mínimo. Seu discurso sobre “liberdade” assume-se irrestrito quando se fala de política e de economia. Mas, como muitos tiozões que vocês conhecem, Llosa também é um enlutado constante pelos “rumos da cultura”, que se degenerou até um estado de barbárie em sua opinião, e deveria ser “guiada” de volta a suas raízes nobres. Como se daria esse dirigismo, quem o faria, quais os parâmetros é algo que Llosa não explicita, deixa suficientemente vago para que ele possa continuar falando o que quer tendo um escape fácil para quando suas contradições são confrontadas.
Ah, uma última nota sobre caráter. A palestra que Vargas Llosa apresentou em Porto Alegre logo após haver sido laureado com o Nobel, parte do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, trazia muitos pontos e mesmo trechos que ele reaproveitaria no seu discurso do Nobel, então vocês não precisam acreditar em mim, podem simplesmente ir lá e ler. E lá Vargas Llosa manteve uma das declarações mais lamentáveis proferidas por ele em toda a sua perra existência. Llosa é um crítico feroz do pensamento de Foucault. Em tese, não haveria nada de errado com isso, mas na prática a situação é outra. Llosa, em seu discurso tanto em Porto Alegre quanto no Nobel, associa, com uma ambiguidade feroz e passional, a decadência da filosofia promovida, em sua opinião, pelo pensamento de Foucault, à “decadência moral” em que vivia o próprio filósofo francês. As menções gratuitas de Llosa às excursões de Foucault por saunas e bares gay era brandida para que ficasse no ar a conclusão implícita de que a morte do filósofo em decorrência da AIDS teria sido uma espécie de castigo poético ou uma justiça do acaso à dissolução moral do autor.
Se você acha que Llosa escreveu grandes romances, estou plenamente disposto a discuti-los com você. Agora, se é essa aí a sua noção de “caráter”, o que eu quero de você é distância…