Uma das coisas que eu tento com muito afinco agora que estou fora das redações da outrora autoproclamada grande imprensa é não achar que “no meu tempo é que era bom” ou que há um processo irreversível de decadência do jornalismo em curso – uma afirmação que, na maioria dos casos, quando avaliada com o devido cuidado, indica que o ponto estimado pelo jornalista para o início “da decadência” é o exato dia em que ele foi demitido. Também não sou dos que deploram totalmente o atual estado da imprensa de modo geral, tento não ser o milésimo jornalista branco de meia-idade ainda viúvo do Pasquim e não procuro desqualificar a turma mais jovem simplesmente porque eles são isso, mais jovens.
Tenho sim críticas pontuais ao atual cenário, menos aos jornalistas ou mesmo ao jornalismo contemporâneo, mas elas são na maioria das vezes voltadas a escolhas feitas nos patamares mais altos da estrutura de poder, e não acho especialmente que elas são culpa da geração mais jovem (diacho, algumas delas eu vi serem tomadas por pessoas da minha geração ou mesmo gente que trabalhou comigo). Dito isso, uma coisa que acho sim preocupante nos veículos que acompanho é a aparente total incapacidade de parte da imprensa, principalmente em sua vertente online, de fazer o mínimo: passar informação.
Não sei vocês mais novos, que já nasceram imersos nessa realidade, mas eu aqui, um cara beirando os 50 que cursou a faculdade de jornalismo na primeira metade dos anos 1990 e sinto uma saudade infinita da época em que havia um certo padrão na imprensa de usar ou ao menos exigir o lide (ou “lead” pros mais afeitos ao inglesismo do jargão bastardo) como formato, estruturar as notícias como o que chamávamos de “pirâmide invertida” e, olha só que conceito revolucionário, dar a principal informação no início e as acessórias e menos relevantes no fim.
O Lide
Para quem não é do jornalismo, uma recapitulação muito rápida: Lide é, num esboço bem simples, o primeiro parágrafo de um texto jornalístico, aquele que deve apresentar de pronto as informações mais importantes de uma notícia de modo a captar a atenção do leitor para o resto, mas ao menos oferecendo um resumo do mínimo do mínimo sobre o que trata determinada “matéria”.
Décadas de teorização, conceituação e prática do jornalismo noticioso levaram à noção, por muito tempo um consenso nas redações em geral, de que um bom “lide” era aquele que, de algum modo, respondia no primeiro parágrafo, seis perguntas fundamentais sobre um fato: quem, o quê, onde, quando, como e por quê. Pirâmide invertida, nas palavras de Adelmo Genro Filho naquele que é considerado um dos grandes livros sobre o tema, O Segredo da Pirâmide, é um modelo de “representação gráfica de que a notícia deve ser elaborada pela ordem decrescente de importância das informações”.
O próprio Adelmo Genro conta em seu livro que durante muito tempo circularam anedotas e causos vinculando a predominância dessa estrutura à resposta possível para dificuldades técnicas e operacionais do jornalismo como ofício:
“Vários autores afirmam que o lead surgiu em virtude dos defeitos técnicos que ocasionavam interrupções nas linhas telegráficas. Os editores ordenavam, então, que seus correspondentes relatassem primeiro os fatos principais”.
O uso do “lead” também facilita a padronização de determinadas práticas no processo de edição de uma notícia para sua publicação, uma vez que faz parte da produção da notícia, principalmente em veículos diários, uma compartimentalização de tarefas que faz com que um repórter precise muitas vezes deixar o texto pronto para que outro o edite, incluindo aí um eventual corte para que ele possa “caber” nos espaços predeterminados em um jornal de papel ou numa notícia para ser lida em uma locução curta em rádio ou TV. Assim, uma das tradições do jornalismo é o que chamamos todos de “cortar pelo pé”: você tem um texto, precisa reduzir algumas linhas, você vai cortando do último parágrafo para frente, uma vez que ali deve estar o material menos “suculento” da narrativa.
O Segredo da Pirâmide
Claro, isso nunca foi uma regra pétrea e nunca foi um modelo muito bom de lidar com o texto alheio sem que ele sangrasse o sentido por um corte mal executado, parecendo ter sido mais mutilado do que cortado. Essa regra também vale às mil maravilhas para textos sobre fatos noticiosos, mas não serve para algumas outras instâncias do jornalismo, como as grandes reportagens de fôlego que incorporaram ao longo das décadas muitas inovações e experimentações surgidas em movimentos variados de aproximação do jornalismo com o literário (nem sempre bem-sucedidas, aliás. Assim como na literatura, o que conta nesses casos é menos uma técnica geral e mais a qualidade do autor do texto).
Talvez pela simpatia que estudantes de modo geral tem pelo “jornalismo literário” (porque quando jovem todo mundo acha que escreve muito bem), técnicas como o lide e a pirâmide invertida foram ganhando reputação de texto engessado. Outra questão já era formulada por Adelmo Genro Filho em seu livro, que propunha que a própria fórmula da pirâmide invertida de se dirigir do “mais importante” para o “menos importante” era equivocada, e que uma notícia realmente consistente deveria estruturar-se do singular para o particular:
“Não se trata, necessariamente, de relatar os fatos mais importantes seguidos dos menos importantes. Mas de um único fato tomado numa singularidade decrescente, isto ë, com seus elementos constitutivos organizados nessa ordem, tal como acontece com a percepção individual na vivência imediata”.
Jogo de esconde
Portanto, o modelo do lide, embora valorizado em teoria, não era cláusula sagrada, mas ao menos sinalizava uma ideia: a de que a notícia deve ser estruturada de modo a informar o leitor logo de cara o que é importante na história que está sendo contada. Chega a ser vagamente cômico que, com o advento da biblioteca infinita da internet, os jornais passaram a tentar vender a ideia de que eles providenciam uma necessária “curadoria” da miríade de informações disponíveis online, quando essa ideia fundamentalmente curatorial expressa na antiga estrutura foi uma das primeiras das modernas ferramentas de concorrência pela atenção do leitor num ambiente digital.
Com a criação dos portais de notícias por toda parte e o estabelecimento irreversível dos mecanismos de busca como parte indissociável do novo ecossistema de comunicação no mundo digital, começaram a aparecer as famigeradas regras de Search Engine Optimization (otimização de mecanismos de busca), com supostas verdades oraculares sobre que termos devem ser usados em títulos e nos parágrafos iniciais para tentar colocar uma notícia publicada no seu portal ou no seu site em melhor colocação quando alguém dá uma busca. Não sei em que ponto as pessoas ainda levam esse bagulho a sério numa época em que todos já sabem que os mecanismos de busca são hoje manipulados por algoritmos que têm mais a ver com elementos financeiros do que de informação – incluindo o perfil de consumo digital do leitor. O fato é que esses métodos durante um tempo eram martelados nas redações como os Mandamentos, havendo até mesmo um ou outro editor normalmente encarregado só disso.
Que mal pode haver nisso, afinal? Uma vez que o uso de técnicas para ter um melhor resultado nas buscas dos leitores não deixa de ser mais ou menos um conjunto de postulados como era o do antigo lide? Porque mesmo fruto do empirismo, o lide partia do princípio de que ao leitor se deveria informar o que era importante primeiro. Podia não ser feito sempre, podia ter sua própria grande meada de problemas, mas acho esse um princípio válido. Hoje, a atual configuração das notícias online é feita para garantir não a sua leitura, mas o seu clique, o seu acesso, para manter você o máximo de tempo possível no ambiente virtual do portal ou do site, de preferência entupido de propagandas em pop-ups. Logo, hoje a estrutura de uma notícia não conta nada no título, na linha de apoio, no primeiro parágrafo, mas antes esconde a informação num jogo de alusões e esconde-esconde com aquilo que deveria ser o centro do texto: a informação.
Cansaço público
“Jogador que atua na Itália pode vir jogar em clube de SP”. Você clica, e é um reserva voltando de lesão ainda sob contrato no Pordenone, da terceira divisão, que está vindo para o XV de Piracicaba. “Governo anuncia nome que provoca polêmica”. Você clica, desce duas telas até descobrir que é alguém convidado para ser assessor de segundo escalão e que foi alvo de críticas de um Constantino da vida (as definições de “polêmica” na imprensa vivem sendo constantemente atualizadas. “Morre ator inglês da série Harry Potter”. Você vai lá e descobre que é o John Hurt. JOHN HURT, ator com uma sólida carreira de dezenas de filmes e que fazia na série Harry Potter um personagem tão secundário que você não consegue lembrar quem é sem uma consulta ao IMDB. Como também exemplificou um grande amigo meu, também tem a versão “saiba quando sei lá o que vai entrar no streaming” e no último parágrafo não há informação precisa alguma, só “em algum momento deste ano”. Tudo motivado pela necessidade de estender a visita do IP de um leitor ao site, inflando aí as “métricas” que são utilizadas para tornar a marca atraente para patrocinadores. Antes, no jornal impresso, você tinha as notícias no espaço que havia sobrado depois de alguém vender os anúncios. Agora, para que haja anúncios, eles te escondem a notícia.
Como eu disse, eu tento não ser um velho saudosista do “meu tempo”. Mas eu vejo com alguma preocupação que considero legítima sobre o quanto esse comportamento da imprensa de esconder aquilo que deveria informar não está um tanto relacionado à fadiga geral do público com a própria imprensa – um levantamento recente da Pesquisa do Reuters Institute, realizada em 46 países, mostra que 38% dos entrevistados não querem ler ou saber de notícias. No Brasil, são 54% – taxa que dobrou em 5 anos e se tornou a terceira maior entre as nações pesquisadas. Claro, ninguém aqui é ingênuo em achar que não há uma influência forte aí das campanhas ativas de contrainformação da extrema direita que ascendeu na política nesse mesmo período.
Só que fica difícil para a imprensa como campo profissional defender seu ofício quando parte dele se tornou um cansativo jogo de esconde-esconde com sua própria matéria-prima.
Foto da Capa: Egor Vikhrev / Unsplash