Mas as máscaras caíram, o que é animador.
A angústia me absorve quando penso nos invisíveis deste Brasil continental. É triste constatar que olhamos muito pouco e respeitamos menos ainda a rica diversidade humana que nos cerca. Estamos em tempo de “união e reconstrução”, eu sei. Mas diante da herança trágica do governo anterior que mostrou, já antes de assumir, que não tinha e nunca teve nada a dizer, muito menos a fazer, o trabalho que temos pela frente é árduo. E os fatos são incontestáveis. Em quatro anos difíceis, o racismo, a homofobia, o machismo, o ódio, a violência, a intolerância e o apoio ao uso de armas explodiram. Impossível ignorar também o cenário armado para que a destruição acontecesse – o impeachment de Dilma Roussef e a posse do vice Michel Temer em 2016, o assassinato de Marielle Franco em 14 de março de 2018 e a prisão de Lula em 7 de abril de 2018, só para citar três episódios lamentáveis.
A tragédia foi política, social, alimentar, sanitária e emocional. Sem voz. Sem apoio. Sem consenso. Sem fraternidade. Sem respeito pelo outro. Sem políticas públicas claras e eficientes de saúde, educação, segurança e proteção do meio ambiente. A pandemia matou mais de 700 mil pessoas. A fome e a insegurança alimentar atingiram a maior taxa em 17 anos. A miséria aumentou. As trocas partidárias só privilegiaram o andar de cima e revelaram, vergonhosamente, a face de uma política sórdida que o Senado não se esforçou para conter. Mais uma vez, a elite econômica escancarou seus privilégios com o apoio de políticos que lá estavam e ainda estão para servir e defender quem já tem muito.
Humanidade para quê?
Um ano é quase nada para reestruturar um país, mas estamos no caminho. Um pouco atordoados, é claro, mas estamos. Explodiu o que estava contido: ódio, ignorância, violência, descaso. Não podemos mais fingir que não foi nada. Mas as máscaras caíram e as luzes voltaram a iluminar o final do túnel. Lembro, mais uma vez, a reflexão contundente de Peter Pál Pelbart, filósofo, ensaísta, professor e tradutor húngaro que vivia aqui na época – “O Brasil é um país construído em bases violentas, mas que acreditou no mito do brasileiro cordial. Um país que deu anistia a torturadores e fingiu que a ditadura nunca aconteceu. Que não fez reparação pela escravidão e fala que é miscigenado e não é racista. Nós fechamos muitas feridas históricas sem limpar e agora elas inflamaram. Estamos sendo obrigados a ver que o Brasil é violento, racista, machista e homofóbico. Somos obrigados a falar sobre a ditadura ou talvez passar por ela de novo. Estamos olhando para as bases em que foram construídas nossas famílias e dizendo – Essa violência acaba em mim. Eu não vou passar isso adiante. Como todo processo de cura emocional, esse também envolve olhar pras nossas sombras e é doloroso, sim, mas é o trabalho que calhou à nossa geração. O lado positivo é que, agora que estamos todos fora dos armários, acabamos descobrindo alguns aliados inesperados. Percebemos que se há muito ódio, há ainda mais amor. Saber que não estamos sós e que somos muitos nos deixa mais fortes. Precisamos nos fortalecer, amores. Essa luta não é dos próximos 15 dias, é dos próximos 15 anos. Mais: É a luta das nossas vidas. Não cedam ao desespero. Não entrem na vibe da raiva. Não vai ser com raiva que vamos vencer a violência. E se preparem, tem muito chão pela frente”.
Então, vamos pisar neste chão com firmeza e calma. E trabalhar com lucidez e humanidade pela mudança necessária.
O instigante universo à margem e, ao mesmo tempo, no centro de tudo, traz histórias que tecem a vida comum, unindo os fios da condição humana sem caricatura, sem maquiagem e sem estereótipos. Um mergulho no cotidiano de pessoas simples revela singularidades de vidas tão próximas e, ao mesmo tempo, tão distantes. A maioria invisível, que povoa as periferias das grandes cidades, resiste e encara a luta necessária, mas está sujeita a tudo, especialmente ao preconceito, à injustiça que destrói sonhos, gera frustração e violência, São passageiros de uma agonia que parece não ter fim e desacomodam a nossa, às vezes tão distraída, consciência social. Passageiros que estão ao nosso lado nas ruas, nos ônibus lotados, no supermercado, nos centros de saúde, no cinema, no teatro, na dança, na literatura e apontam o abismo para não cairmos novamente. Mostram que precisamos olhar o outro, aprender, desaprender, reaprender, fazer, desfazer e refazer, sempre em busca de uma vida ética, justa e solidária.
“Nós somos o ecossistema. A natureza precisa de nós e nós precisamos dela. Descemos a ladeira. Escorregamos. Reequilibramos. Seguimos. A vida é movimento e transformação incessante. Somos vibração. Temos todas as chances do mundo”, já disse a Monja Cohen. Podemos estar onde quisermos e fazer a diferença do jeito possível, transformando realidades.
Livros como Amoras, de Emicida, Pequeno Manual Antirracista, de Djamila Ribeiro, O Avesso da pele, de Jeferson Tenório, Os Supridores e Mas em que mundo tu vive?, de José Falero, Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, Pela liberdade de nos construirmos negras”, de Cristina Ribeiro, e tantos, tantos outros, revelam uma periferia onde a vida pulsa forte e se manifesta na literatura, trazendo vozes necessárias para a transformação que precisamos. É a arte gritando por nós e apontando saídas. Precisamos ouvir estas vozes e fazê-las ecoar ainda mais. Este é o caminho. Ainda há muito por fazer para mudar a realidade que aí está. Mas já estamos fazendo e faremos cada vez mais. Que venha 2024!
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