O termo “intelligentsia” que nós, universitários, usamos com frequência foi utilizado pela primeira vez, ao que se supõe, na Rússia do século XIX: designava um corpo de intelectuais preocupados com o projeto de desenvolvimento nacional em bases “racionais”, em que a educação cumpriria um papel fundamental num país que fora, praticamente, o último da Europa a abolir a servidão feudal. Não se tratava de nenhum corpo intelectual homogêneo ou orgânico (ligado a uma classe social específica), mas um bloco de pensadores com preocupações semelhantes, embora com métodos e princípios muitas vezes divergentes.
Aqui mesmo no Brasil, surgiu no início dos anos 50 (na chamada Reunião de Itatiaia, em 1952) um grupo de intelectuais que viria a formar o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), reunindo luminares da envergadura de Hélio Jaguaribe, Álvaro Vieira Pinto, Guerreiro Ramos, Nélson Werneck Sodré…, e que veio a se constituir – como chamou Caio Navarro de Toledo – numa verdadeira “fábrica de ideologia”. Tratava-se, no sentido mais exato do termo, de uma “INTELLIGENTSIA”, forjada para fornecer o material ideológico que iria irrigar o “nacionalismo desenvolvimentista” de Juscelino Kubitschek (1956-61). A visão que esse grupo tinha do Brasil, seus agentes de desenvolvimento e atraso, de progresso e reacionarismo, estava apoiada no que chamávamos de “dual-estruturalismo”: um Brasil (eternamente!) fraturado em que se defrontavam o “POVO” e o “ANTIPOVO”, a “NAÇÃO” e a “ANTINAÇÃO” e onde uma tal de “burguesia nacional” (mais tarde desmoralizada por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto na “Teoria da Dependência”) deveria agenciar a próxima etapa do nosso capitalismo, apoiada inclusive pelo Partido Comunista (aqui mesmo, em Pernambuco, o PCB apoiou o “capitalista” José Ermírio de Morais para o Senado em 1961!).
Eu acho que todas as épocas produziram tanto sua “intelligentsia” quanto sua “BURRITSIA”, termo que acabo de inventar, que explicarei a seguir e que espero que tenha tanto sucesso acadêmico quanto aquele inventado pelos russos! A “burritsia” (de “BURRO” mesmo!) não é a simples “Idiotia” de Aristóteles (a recusa consciente em participar da vida pública): aliás, nossa “burritsia”, vocês se lembram, participa de certos espaços como, por exemplo, as áreas federais de segurança em frente aos quartéis do Exército e, em pleno exercício de sua “burritsia”, pede, em nome da liberdade, a sua supressão e a instalação de uma ditadura militar. A “burritsia” especialmente bolsonarista, às vezes, é exemplarmente personificada num paspalhão “cabeça-de-papel” marchando infantilmente com a bandeira nacional ao ombro e batendo continência para fantasmas fardados; ou agarrado à dianteira de um caminhão em alta velocidade, vestido, claro, com as cores nacionais! Quando em grupo – e a reunião das massas parece despertar os veios mais profundos de nossa irracionalidade – eles acendem os celulares, colocam na cabeça e enviam sinais para fantasmas extraterrestres, em protesto contra a “inoperância” dos militares em darem um golpe de estado (lembram?).
No caso daquela “intelligentsia” reunida no ISEB, podíamos afirmar que, ao menos, estava interessada em conhecer, investigar, analisar, criticar aquilo que chamamos de “realidade brasileira”: se acertou ou não, pelo menos produziu obras importantes, identificou problemas reais, conhecia nossa formação histórica, era democrata e, como toda “intelligentsia” (na verdade, todo intelectual!), gostaria de salvar a Nação (de sua dependência externa, do imperialismo e seus agentes internos, do atraso econômico…). Nossa “burritsia”, ao contrário, produz e reproduz um verdadeiro “colapso cognitivo” com a realidade, para admitir apenas o filtro binário de valores fragilíssimos (mito X corrupto; bem X mal; liberdade X comunismo…) e de recurso à violência e ao insulto (vide Pablo Marçal que, aliás, não cometeu um “erro político” ao falsificar um laudo: ele foi perfeitamente coerente com o depravado moral que sempre foi. “Erro” seria ele cometer um ato digno e generoso!). E todo cotejamento daquela crença com a realidade com vistas à simples e prosaica verificação de seu sentido ou da objetividade do real é interpretado como ameaça subversiva ao fundamentalismo de suas crenças (pátria, deus, família e… liberdade!). Trata-se da forma mais conhecida e perigosa do fanatismo, agora ocupando administrações municipais em diversas cidades brasileiras, numa eleição municipal que, em boa parte, trouxe à tona o esgoto subterrâneo que atravessa nosso social!
Como educador, eu sempre acredito que algo pode ser feito para que o “princípio de realidade” (Freud) possa de certa forma prevalecer (para além do “princípio do prazer”) e nos conduzir para a maturidade emocional e intelectual: a consciência de que meu desejo, minha crença, minha verdade precisam necessariamente do contrapeso e do freio que a realidade e a alteridade impõem. Neste sentido, os alemães tiveram um duríssimo trabalho pedagógico de desnazificação do país após 1945, como mostrou Gitta Sereny (“O trauma alemão”) e os resultados nunca estão definitivamente assegurados. O que nos espera?
Foto da Capa: Intelectuais russos do século XIX / Tass
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