Beatriz, a motorista, chegou à hora marcada pelo aplicativo. Abriu a porta de trás, deu um gentil bom dia e arrancamos para o lançamento, em São Leopoldo. Ela não sabia – e nunca se sabe – como começa uma conversa; tampouco, ali, se soube, mas, uma vez iniciadas, conversas costumam trazer questões importantes, e aquela trouxe. Bea acordava, todo santo dia, às quatro e quarenta da matina, tomava um café e um banho, dava um beijo em filha e neto que ainda dormiam, e começava a rodar. Desde as cinco e meia, com uma parada às três para o almoço, uma breve caminhada pela rua onde estivesse (“para não atrofiar demais”) e retomava a labuta até às oito e meia da noite.
Nunca se sabe o que faz uma conversa continuar, mas costuma haver um nó que a engata como uma marcha bem dada, e este nó provoca uma pergunta que estica histórias como aquela. O que move alguém a acordar todo santo dia, tão cedinho, e rodar o dia inteiro, quase sem parar? Bea Costa respondeu que é um objetivo; no caso dela, juntar o dinheiro para sustentar-se com sobra suficiente para bancar o Grande Concurso Miss Plus Size, categoria Lady, no qual era a finalista do Estado, para modelos “cheinhas” entre 37 e 56 anos. As outras duas categorias eram a “curve”, para mulheres encorpadas, igual e diversamente em suas curvas, e a “plus”, para aquelas ainda mais acima do peso padrão.
A modelo Bea Costa contou que a renda do aplicativo mais a do trabalho de “lady drive” (motorista mulher para mulheres) davam conta de pagar maquiagens, vestidos, tempos de ensaios até a grande final de novembro, em Sapiranga. A sua luta, ao enfrentar concorrentes, não era simplesmente a favor da maior beleza. Tratava-se de combater o preconceito, desconstruir padrões rígidos de estética e suas apologias a uma magreza absoluta, anoréxica, doente. Por isso, despertava tão cedo, rodava o dia inteiro e adormecia, sonhando com o dia seguinte de muito trabalho nas ruas e preparação nas passarelas para o concurso.
Toda história bem contada é uma interação, e essa foi a hora de eu me apresentar e contar um pouco do destino para onde ela me levava com tamanho cuidado, entre retas e curvas de uma estrada interurbana. Celso Gutfreind, psicanalista e escritor, na direção da livraria Baobá, a fim de lançar O elogio ao começo, um livro sobre o quanto o olhar de um par de pais ou de uma sociedade inteira pode enrijecer um sujeito que levará a vida para libertar-se deste olhar (se foi mal dado) e dos padrões envoltos nele (se foram rígidos) para tornar-se ele mesmo, com seus verdadeiros pesos e medidas.
Bea e eu já estávamos irmanados em um só sentido, onde pode dar uma BR, embora não fosse bem assim. No fundo, eu considerava a luta dela mais renhida do que a minha, mesmo que houvesse aquela sintonia nos objetivos. Foi então que a Modelo Plus Bea Costa me serviu de exemplo e, antes de desembarcarmos, adiantei em uma hora o grito do despertador para o dia seguinte.
Foto da Capa: Bea Costa / Reprodução do Instagram @imbeacosta
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