É recorrente a ideia de que a língua(gem) seja o fiel da balança acerca do que somos, mas esse é um mito linguístico da história humana, calcado na figura do Homem Vitruviano de Da Vinci, ou, mais concretamente, no europeu, branco, heterossexual, falante de uma língua ocidental de prestígio. “A produção de sentido vinculada ao verbal exclui não apenas a riqueza da comunicação humana como um todo, mas também a possibilidade de admitirmos que os não humanos (animais) também têm linguagem, ou seja, que não há entre nós e eles uma dicotomia, mas graus de complexidade e alcance no uso situado da linguagem em seus próprios mundos vividos.” (Alastair Pennycook).
Friedrich Nietzsche já perguntava, em 1873: “É a linguagem a expressão adequada de todas as realidades? A ‘coisa em si’ (tal seria justamente a verdade pura sem consequências) é, também para o formador da linguagem, inteiramente incaptável e nem sequer algo que vale a pena. Ele designa apenas as relações das coisas aos homens e toma em auxilio para exprimi-las as mais audaciosas metáforas. Um estímulo nervoso, primeiro transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora. E a cada vez completa mudança de esfera, passagem para uma esfera inteiramente outra e nova. (…) Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores, e no entanto não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem as entidades de origem.”
Nossos ancestrais formaram um mapeamento de mundo que ia muito além da linguagem que foi se impondo nas formas de comunicação do homem. Nas Américas, sonhos e visões estabeleciam jornadas de exploração do Ser e do Não-ser que os indígenas empreendiam de diversas formas, percorrendo o continente de uma ponta a outra e estabelecendo, assim, interações humanas, naturais e cósmicas. Na Austrália, estabeleceram-se os “rastros dos cantos” através do deserto e das matas, rastros imateriais e invisíveis de seres totêmicos legendários que vagaram pelo continente no Tempo do Sonho (da Criação), cantando tudo o que cruzava seus caminhos – pássaros, animais, plantas, pedras, poços – dando existência ao mundo por meio do canto, do som, que os aborígenes reconhecem. Na Índia antiga, os yogis e os sábios em meditação experimentaram a unidade entre o Ser e a Criação, abrindo a compreensão da verdadeira natureza da realidade, oculta sob o véu de māyā, na imposição do aparente sobre o essencial.
E assim em todo o planeta, em cada lugar, em cada povo, fomos sendo construídos e nos construindo em sons, imagens, texturas, energia, muito mais através do corpo do que da língua(gem), nos conectando uns aos outros e também a corpos animais, vegetais, líquidos, sólidos, gasosos. Desenvolvemos capacidades de comunicação não verbal, de “leitura” da natureza, de telepatia, de hipnose, de sonhos coletivos. Conexões entre corpos terrenos e cósmicos estão gravadas em nosso DNA desde os tempos mais remotos, quando Ser e Não-ser eram aquilo-que-é sem barreiras de observação.
A psicoterapia e a psicanálise, que se construíram a partir da palavra, paradoxalmente já apontavam a limitação da linguagem para nos descrever, reconhecendo que não é possível captar tudo o que somos – nós somos aquilo que escapa a qualquer captura. Com o avanço da tecnologia que se acelera através da Inteligência Artificial e um outro modelo de linguagem, ao que tudo indica, prestes a ser estabelecido entre máquinas, assim como a alteração profunda no nosso design biológico com as manipulações do genoma, os órgãos de animais (em especial, suínos) geneticamente modificados destinados para transplantes em nossos corpos e os dispositivos eletrônicos que implantados no nosso cérebro, por exemplo, ampliam a memória, a linguagem, como a conhecemos mais comumente, ficará ainda mais aquém da ideia de nossa condição humana.
A linguagem, mesmo sendo de relevância indiscutível em nossa forma de expressão – da beleza da poesia de Drummond ao terror da propaganda nazista de guerra –, não é suficiente. É uma sofisticada engenharia genética de corpo e mente, em complexa equação com o ambiente, o tempo e o universo que nos torna humanos, seres únicos, em constante recriação. Quem já escalou uma montanha ou mergulhou no mar de Fernando de Noronha, por exemplo, já experimentou – ou no mínimo intuiu – uma sabedoria que não é um saber do mundo, das coisas do mundo, que sabemos cada vez mais e é sempre insuficiente. É uma sabedoria além da técnica, que muitas vezes julgamos ser uma forma de sabedoria. “O saber-fazer é uma aliança deficitária de teoria e prática que acabou inscrevendo na mente humana a ideia de ter criado uma civilização científica, enquanto, na verdade, não passa de uma civilização tecnológica. A impaciência do Fazer convive mal com as sutilezas do Saber. O grande sábio pertence a uma espécie cada vez mais rara.” (Jacques Bergier).
Acredito que chegou a hora de (re)abrirmos as portas à sabedoria da essência, à sabedoria do Amor, do viver, aqui e agora. Nietzsche concluiu nos últimos anos de sua obra: “Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati (amor ao destino): nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo, (…) mas amá-lo.” Amar a vida em sua completude, do nano ao cósmico, pois só a vida carrega valor em si mesma. Toda a tentativa de descrever a vida é apenas representação. Podemos – e devemos – caminhar sobre a Terra usando nossas aptidões todas, mas conscientes de que é só na expressão do amor que nos tornamos humanos.
Referências:
Posthumanist Applied Linguistics, de Alastair Pennycook. New York: Routledge, 2017.
Dossiê O pós-humano é agora: uma apresentação. Organização de Marcelo El Khouri Buzato, linguista aplicado da Universidade Estadual de Campinas. 2019.
Os Pensadores, Friedrich Nietzsche, Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
O homem eterno, de Louis Pauwels e Jacques Bergier. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971.
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