Estava me preparando para escrever aqui sobre o brilhante Silvio Almeida, novo ministro de Direitos Humanos do governo Lula, e os demais ministros negros que assumem a responsabilidade agora em 2023, quando me veio à mente a história do pai do ministro, que era goleiro e negro. Lourival de Almeida Filho – o Barbosinha – não deve ser confundido com Moacir Barbosa do Nascimento – o Barbosa. Ambos foram goleiros, ambos negros, mas o pai do ministro não jogou na seleção. Por uma suposta semelhança física com o goleiro da seleção brasileira de 1950, ele ganhou o apelido. Os dois nem são tão parecidos assim, a não ser pelo fato de serem negros e jogarem na mesma posição. De resto, o que eles tinham em comum fisicamente era o fato de ter cabeça, corpo e membros, dois olhos, duas orelhas, uma boca, um nariz… nada mais. Mas sendo negros, sendo goleiros, pronto: eram quase iguais. Nós negros e negras vivemos esse vício de nos acharem parecidos, iguais, e nos confundirem com pessoas sem nenhuma semelhança conosco a não ser o tom de pele. Às vezes é até engraçado, mas na maioria delas é trágico. Basta ser negro para ser confundindo com bandido, ser humilhado, interpelado e, muitas vezes, morto.
Voltando ao campo, a derrota para o Uruguai em pleno Maracanã, na copa de 1950, estigmatizou Barbosa. Ele foi apontado como o grande culpado daquele que seria o maior vexame vivenciado pelo Brasil até o terrível 7 a 1, em 2014.
O resultado vivenciado contra a Alemanha não focou em nenhum culpado único. O goleiro Júlio César não foi vilão. O vexame foi coletivo. Com Barbosa, não foi assim. De 11 em campo, ele, o goleiro, foi apontado como o único culpado e teve a carreira destruída. Sua falha foi realmente grave, mas foi só ele? Todos podem errar, menos o goleiro, não é? Menos ainda se esse goleiro for negro. Dos outros dez em campo, ninguém foi capaz de marcar um gol de empate em mais 34 minutos de jogo (o Uruguai fez o gol aos 11 do segundo tempo), ou mesmo de fazer a defesa que impedisse o chute a gol. Azar do goleiro. Barbosa carregou essa dor, esse trauma até sua morte em 7 de abril do ano 2000.
Tem um curta-metragem, dirigido por Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, que resgata a história de Barbosa de forma genial. Barbosa é de 1988 e traz Antônio Fagundes como um torcedor que volta no tempo tentando entender e impedir o que teria acontecido naquele jogo, naquele momento inacreditável em que Barbosa falhou miseravelmente.
Para ver o filme, acesse esse LINK.
Fora da ficção, não se consegue mudar a história. Porém, o estudo e a consciência dos fatos nos permite construir um futuro diferente. É isso que faz Silvio Almeida, nosso ministro. Ele não é um negro brasileiro comum. Não é uma pessoa brasileira comum. Reconhecido por sua forte atuação na luta antirracista, ele é um dos maiores juristas do Brasil e autor do livro Racismo estrutural, publicado em 2019, um dos trabalhos mais influentes sobre o tema. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), presidente do Instituto Luiz Gama e do Centro de Estudos Brasileiros do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, em seu livro Silvio aborda diversas questões ligadas ao racismo estrutural, entre elas a desconfiança em relação às pessoas negras em cargos de responsabilidade. Isso foi vivenciado por seu pai, que herdou não apenas o nome como profissional, mas também o estigma de Barbosa. Goleiro não pode falhar; goleiro negro, menos ainda.
Pensa aí, rapidinho, meu estimado leitor e minha estimada leitora: você se lembra de ver goleiros negros convocados para a seleção brasileira depois da Copa de 1950? Ok, muitos de nós nem éramos nascidos. Mas o fantasma daquela copa perdurou pelo menos até o 7 a 1, quando a Alemanha acabou com a gente em 2014. E a gente sabe: em época de Copa do Mundo, nem precisa gostar de futebol para se ver envolvido.
À exceção de Manga, que disputou uma única partida pela seleção no Mundial de 1966, foram necessários 56 anos para que o Brasil voltasse a ter um negro debaixo da trave em copa do mundo. Coube a Dida, em 2002, a missão de não falhar.
A maldição segue operando. Se não explícita, estruturalmente.
A estigmatização do negro como incapaz de liderar e passar confiança e qualidade naquilo que faz está por todos os lados. Os Silvios Almeidas da vida surgem como heróis capazes de mudar essa crença. Mas a gente sabe: assim como sobre ele e sobre os demais ministros negros — e qualquer pessoa negra de destaque —, paira o descrédito de um lado e a esperança do outro… Tipo aquela máxima absurda que diz que “negro quando não caga na entrada, caga na saída”. Desculpem os mais delicados e finos. Pensei até em usar outro termo, mas, diante do racismo, não temos de buscar eufemismo. A luta tem de ser encarada com a força das palavras, dos pensamentos e dos atos de cada um de nós.