Lembro bem do dia 11 de março de 2020.
Atendi todos os pacientes daquele dia com a janela aberta e ar-condicionado ligado. Antes de ir para o consultório, passei na farmácia e comprei dois potes grandes de álcool em gel: um ficou na sala de espera e o outro, no banheiro.
Muitos pacientes acharam aquilo tudo muito estranho, alguns por desinformação e outros, como foi possível ver depois, por uma tentativa de negar o que viam nos jornais, na televisão, na rádio…
Até porque no dia 11 de março de 2020 tudo ainda parecia estar acontecendo em outro lugar. Como é próprio dos neuróticos, acreditávamos que seríamos a exceção, que aquele vírus que mal conhecíamos não chegaria com tanta força até esse canto aqui debaixo do mapa.
Algumas pessoas já falavam de familiares doentes, mas em outros estados, ou do quanto parecia que se estava exagerando a situação.
Ao final do dia, fui tomado por uma sensação muito estranha quando chaveei a porta do consultório. Um aperto no peito, como quando nos despedimos de uma pessoa querida sem saber quando vamos reencontrá-la.
No começo da noite, chegou a notícia de que Porto Alegre havia registrado o primeiro caso de transmissão comunitária de COVID-19. Lembro que eu achava ridículo uma doença ser nomeada por uma sigla: que pelo menos dissesse o seu nome inteiro.
Ainda que eu more praticamente na frente do meu consultório, aquela avenida subitamente se tornou um precipício. Fiquei pensando em todos os livros nas prateleiras, nas plantas, nos cadernos de anotações. Em especial, me preocupavam os livros deixados pela metade, alguns ainda abertos sobre a mesa de trabalho.
Sei que essa narrativa parece meio dramática, mas gostaria que o leitor lembrasse de si mesmo naqueles dias: pouco sabíamos sobre o vírus, nem sequer sobre a forma de transmissão. Será que dá pra caminhar na rua? Será que as roupas já não estão infectadas? Será que isso vai durar muito? Em todos lugares, opiniões divergentes: algumas autoridades anunciavam que a pandemia seria longa, coisa de três anos (acertaram). Outros eram mais comedidos: em poucos meses tudo volta ao normal. Bom, nem preciso falar sobre o Brasil, um dos poucos países do mundo em que o presidente não só negou a gravidade da situação como incentivou a propagação do vírus.
No final da noite do dia 11 de março eu já tinha enviado mensagem para todos os pacientes avisando que não atenderia mais presencialmente. Lembro de ainda ter colocado um adendo que, hoje vejo, era mais para me consolar do que qualquer outro motivo: “Até as coisas melhorarem…”.
Como sabemos, as coisas não melhoraram. Pioraram. E muito.
Passei os dias seguintes pesquisando supermercados que entregavam as compras, me certifiquei de que a casa estava bem abastecida de medicamentos, procurei com cuidado as plataformas mais seguras para clinicar online. Enfim, na manhã seguinte eu já estava “recebendo” meus pacientes através da tela e sabia de onde pediria comida e itens básicos da casa.
Tive o privilégio de trabalhar em uma área que pôde, não sem algumas perdas, ser transportada para o home office. Sei que muitos perderam seus empregos ou tiveram que seguir indo presencialmente aos seus locais de trabalho, sendo expostos ao vírus e à ignorância de seus superiores.
Estou escrevendo tudo isso porque esses dias eu tive uma crise aguda de tristeza no supermercado. A cena era banal: eu estava no setor de refrigerados, escolhendo uma massa fresca para fazer à noite. Subitamente, senti aquele mesmo aperto no peito que tinha me acometido quando fechei o consultório no dia 11 de março de 2020. O que teria acontecido ali?
Só fui me dar conta do motivo da minha angústia quando estava passando as compras pelo caixa, ao colocar na esteira uma bandeja de tortéis. Sim, tortéis. Foi ali que eu lembrei que, nos dias em que eu estava mais angustiado ou mais preocupado durante a pandemia, eu adicionava na lista virtual de compras uma destas bandejas de massa.
Nestas épocas mais duras da pandemia, eu me consolava uma vez por semana cozinhando um tortéi fresco com molho à bolonhesa. Era um pequeno afago, funcionava como um alívio da angústia e da incerteza.
Os tortéis me remetem à casa da minha avó materna na Serra Gaúcha. Toda vez que íamos para lá, em geral nas férias de inverno, ela mesma fazia a massa e o molho. Era uma tradição sermos recebidos com uma salada de radicci colhido fresco da horta e um prato grande de tortéis ao molho à bolonhesa.
Lá em Caxias do Sul eu me sentia acolhido, estava “entre os meus”. Eu gostava de ouvir os parentes falando o talian, esse dialeto do italiano que tanto escutamos aqui no Rio Grande do Sul. Achava curioso que até o meu pai, saído há tanto tempo daquela casa, também se endereçava aos tios e primos neste idioma tão particular.
Quando criança, ir para a serra era uma pequena aventura por um lugar familiar. O frio, a primeira vez que vi neve na vida, os cobertores pesados, o tijolo aquecido na cama fazendo vezes de bolsa de água quente, o fogão à lenha, as tardes de domingo vendo futebol com o meu avô (que sempre dizia torcer para o time do coração do neto que estava lá no momento).
Quando eu o visitava, meu avô era gremista. Só muitos anos depois da morte dele fui saber que ele era um colorado fanático.
E foi só há poucas semanas, quando tive essa crise de tristeza no supermercado, que entendi que aquelas noites em que eu comia tortéi durante a pandemia eram tão preciosas justamente porque esse jantar me trazia a mesma sensação de afago que eu encontrava em Caxias do Sul. Me fazia sentir de novo o aconchego de uma avó ou de avós que ficavam felizes ao ver o neto chegando em férias da capital.
Acho que eu quis compartilhar esta experiência com os leitores quando vi que a OMS finalmente decretou o fim da emergência da pandemia da COVID-19. Uma ótima notícia. Depois de tanto tempo afundados, acabamos de emergir.
Mas tem sido interessante notar, tanto pelo relato de amigos quanto pelo de pacientes, que apesar de a pandemia ter sido, como o próprio nome diz, um evento que afetou a todos ao mesmo tempo, ainda assim cada um de nós tem vindo à tona de forma diferente, em tempos diferentes.
Afinal, ainda que a pandemia tenha sido um fenômeno global, cada um entrou e sairá dela a partir de suas características singulares.
Para aqueles que sempre foram um tanto fóbicos, ficar em casa pode ter sido um alívio. Para os que precisam da validação de um olhar externo, foi um pesadelo solitário. Para os hipocondríacos, o vírus pode ter sido a confirmação de que seus temores estavam certos, que a morte realmente sempre esteve muito perto. Os mais obsessivos talvez tenham tido suas manias de limpeza finalmente recompensadas. E assim vai.
A forma como estamos emergindo deste purgatório coletivo pode nos ensinar muito sobre quem somos.
Da minha parte, acho que ainda vou levar algum tempo para comer tortéi ao molho à bolonhesa. Talvez só quando eu visitar Caxias do Sul de novo.
Foto da Capa: Cottonbro Studio/ Pexels