Talvez não – eu próprio não conhecia o termo até dias atrás, quando me deparei com um livro recentemente lançado na França por Isabelle Barth, “La kakistocratie ou le pouvoir des pires – Voyage au coeur de l’incompétence” (2024, Éditions Management et Société – Caen). Os francófonos já têm, a partir do título, subsídios para decodificar mais esse conceito desse tempo contemporâneo em que pipocam novidades linguageiras aqui e ali. O referido título, em minha tradução para o português, daria algo como “A kakistocracia ou o poder dos piores – viagem ao coração da incompetência”. A sensação de estranheza começa a se dissipar… O termo é um compósito oriundo do grego: kakistos (aproximativamente “pior”) é o superlativo de kakos (“ruim”); kratos, por sua vez, diz respeito a governo, poder. Temos, nessa linha, os termos “democracia” – o kratos-poder do demos-povo – e “aristocracia” – o kratos-poder dos aristos-melhores. Seria, portanto, a kakistocracia o oposto semântico da aristocracia?… Prudência é especialmente recomendada aqui, até porque, em termos semântico-conceituais, e nos contextos reais de uso, provavelmente há zonas de sobreposição de aristocratas e kakistocratas…
Não sei se você, leitor, compartilha minha avaliação de que a kakistocracia, nesse sentido do empoderamento do que há de pior em determinada sociedade, atravessa as dinâmicas de distribuição de poder e, portanto, empoderamento pelo mundo afora. Não é raro vivenciarmos a impressão de que estamos sob a égide de idiotas, néscios, incompetentes, ignorantes dos princípios mais básicos que, em tese, deveriam estar no acervo de habilidades e competências de quem acedeu a cargos de mando político-administrativo. É verdade que as coisas não são tão simples assim: posto que somos movidos e referenciados por nossas visões de mundo (a famosa weltanschauung da filosofia alemã kantiana), o que parece referenciamento adequado para uns (como a responsabilidade do Estado em relação a cada cidadão) é perfeitamente inadequado para outros e outras. Disso para que os opositores se tratem uns aos outros com adjetivos kakos é a sequência esperada dessas dinâmicas… A idiotia, a miopia conceitual não são (e tomara que jamais sejam) conceitos absolutos. Do contrário, estaríamos em plena distopia – mas aqui é outra história…
Um outro conceito razoavelmente polêmico ronda esse debate, o conceito de meritocracia: o poder ou a partição de lugar social que é referendado pelo mérito. A meritocracia estaria nas antípodas da kakistocracia? Ora, da mesma forma que aludimos a zonas de sobreposição entre aristocratas e kakistocratas, não é absolutamente descartável a possibilidade de que haja sobreposição entre kakistocracia e meritocracia – mesmo que haja a tentação etimológica de se pensar, aqui, numa oposição entre os “melhores” e os “piores”, “conscientes” e “alienados”, “letrados” e “ignorantes”. Noves fora as questões acerca dos caminhos desiguais, em sociedades ocidentais como a nossa, de acesso à construção do tal mérito, o que confere ao conceito de mérito uma faceta de concretização de uma estrutura de desigualdade social, o mérito, em si e por si, não é um conceito de circunscrição simples e fácil, na medida em que um conceito que o operacionaliza, o conceito de competência, é igualmente sujeito a tensões entre as tais visões de mundo: tem mais mérito o dirigente político que opera no curto e médio prazo (ênfase sobre o imediato), ou no longo prazo (ênfase sobre o estrutural)? O caminho correto da gestão da economia é aquele que prioriza o crescimento prévio da riqueza a ser posteriormente dividida, ou aquele que ataca as desigualdades imediatas como caminho de crescimento adequado dessa riqueza? Os exemplos são infindáveis. O ponto aqui aludido é que as ideias de competência / mérito, distinção entre os melhores e os piores não são passíveis de enquadre absoluto. Afora o terreno muitas vezes injusto (para dizer o mínimo) de onde brota essa controvertida meritocracia.
Não obstante, os negacionismos variados nos estragam, muitas vezes, o bom humor matinal (e ao longo do resto do dia). A atitude social de aceitação de uma gestão coletiva da disseminação de informações falsas (ou informações desprovidas de um mínimo zelo por suas fontes) igualmente nos oprime e revolta – inclusive por conta dos desdobramentos tóxicos dos cancelamentos e linchamentos de reputações. A desconsideração de certos avanços histórico-sociais que se supunha pétreos, como a estrutura republicana da partição de poderes mutuamente limitantes, é igualmente revoltante, e mesmo adoecedora para cada indivíduo. A abolição de garantias cidadãs de vida e lugar social em função de categorias como gênero, raça e etnia representa igualmente contextos de identificação de que estamos a caminho (ou já chegamos) a uma efetiva kakistocracia.
No desdobramento crítico conceitual da ideia de “poder dos piores”, é preciso não perder de vista dois aspectos: primeiro, a história frequentemente é conduzida por quem tem algum poder concreto, e não por quem tem alguma razão, no sentido de uma ratio plausível de exame crítico e embate argumentativo. Segundo, no espírito da fábula dos sete cegos de Jericó, um elefante pode razoavelmente gerar visões definidoras diversas e pertinentes (em si), tendo em vista que se apalpe a tromba, o ventre, o rabinho insignificante, as poderosas presas… O que há de pior, combinemos aqui, não pode se circunscrever ao que diverge de determinada perspectiva. O que há de pior é a postura empedernida do “não li e não gostei”, da limitação de visão que se origina e desemboca num tacape, num acervo de mísseis, numa súmula autoproclamada como sagrada, cujo debate é interditado desde sempre.
O poder dos piores, pelos piores, para os piores não tem como escudo político-existencial a busca e aconchego dos (autoproclamados) “melhores” – muitas vezes os próximos piores… O antídoto, como diria Millôr Fernandes, seria antes acreditar sempre na possibilidade de que nada tem crédito prévio e plenamente assegurado, crer sobretudo e sempre na possibilidade do descrer. Tem certo ranço iluminista anticlerical, mas eu próprio não teria alternativa melhor a oferecer. Tal atitude tem, no mínimo, o mérito de abreviar o tempo de permanência dos piores (com o risco da não-sobrevida dos candidatos a melhores…). Pela superação dos piores, aqui incluída a superação da busca acalentadora e ilusória dos melhores. O “dia de glória” (“le jour de gloire”) das revoluções libertárias históricas, como pretendeu ser a francesa de 1789, não chegou naquele tempo, está longe desse atual, é uma miragem fugidia no horizonte. Trata-se no máximo de aceder a um momento fugidio de superação de um governo dos piores, rumo ao mandato-tampão dos menos ruins. A ultrapassagem da kakistocracia não pode se basear numa soteriologia.
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