Vamos começar esta conversa me localizando… eu sou uma mulher negra, eu fui uma menina negra na década de 80 e não me ver representada em filmes, princesas, rainhas, protagonistas deixou sequelas… fez eu entender que eu não era bem-vinda e nem admirada. Teve o resultado do que se chama pacto narcísico da branquitude, ou seja, ao autocentrar as referências e a padronização branca como a estética ideal, me ensinou subliminarmente que eu não sou bonita, potente ou destinada a economia do afeto no mundo branco. Melhor começar direto ao ponto nesta reflexão do que simplesmente repetir: representatividade importa.
Em entrevista emocionante para “Talks With Mama Tina”, Halle Bailey (mentorada de Beyoncé) falou sobre a importância de representar uma Ariel negra para as crianças da comunidade. “Eu vim para reinventar Ariel, e mostrar para outras belas garotinhas negras: hey, você pode ser estrela, você é bonita, você é mágica, você é mística.” E termina a entrevista se emocionando com vídeos que viralizaram mostrando a reação de meninas dizendo: ela é negra como eu. O site tracklist fez um compilado dessas reações que foi compartilhado milhares de vezes, inclusive pela atriz.
Fãs da Disney se uniram em peso contra os ataques racistas sofridos pela atriz, após o lançamento do trailer do filme no Youtube, onde atingiu 1 milhão de dislikes com falas agressivas, racistas e as falas normalizadas: “Não combinou Ariel com uma atriz negra.” E algumas matérias com tom neutro dizendo: A pequena sereia desagradou parte dos fãs que esperavam uma versão mais fiel a do desenho animado de 1989.
Vamos abrir estas narrativas… pois o racismo como estrutura de opressão é um sistema cultural de exclusão material e simbólico de pessoas negras. Em síntese, é a desumanização das pessoas negras não permitindo o reconhecimento como igualitário. Então não se pode imaginar sereias, elfos, seres míticos pretos, afinal, a exclusão também é simbólica e invade o campo da imaginação. Imagina negros e negras em situação de poder? Ou de protagonismo? Por isto, o estranhamento, o desagrado… sereia é bonita… então nesta lógica a beleza não é negra… e isto permite um internauta ir e embranquecer a Ariel de 2022, tornando-a branca, configurando um ataque ciber racista.
O Twitter baniu o internauta, o Youtube retirou a contagem de dislikes, mas é possível ver no Google: 16 milhões de visualizações, 371 mil likes e 1,2 milhões de dislikes… Para quem acha que hoje estamos em outro patamar de modernidade e que racismo é mimimi, seguem dados. Segundo a máxima racionalista: contra fatos não há argumentos. Porém, as reações não são unânimes, mas ainda são expressivas. Do ponto de vista mercadológico, a repercussão está sendo positiva e posicionando a Disney em um campo de inovação e disrupção estética. Até dia 12 de setembro, “A Pequena Sereia” ganhou mais de 104 milhões de visualizações globais. O teaser passou de títulos da Disney como “Cruella”, “A Bela e a Fera”, “Alladin e Malévola”.
O VIDEO das reações das meninas negras vendo o trailer da “Pequena Sereia” emociona servindo como um instrumento de sensibilização e abertura para a temática, mas ainda precisamos explicar que sereias, princesas, rainhas podem ser pretas, ser lindas e serem felizes, serem humanas.
E para os endurecidos e supremacistas deixo a recomendação do vídeo da jovem influencer negra @gabyferraz postado em seu insta e compartilhado no site mundo negro: “Então depois de todos os africanos que vocês jogaram no mar, vocês ainda ficam surpresos com uma sereia preta?” É o recado seco e duro da geração Z para dar um norte na discussão. Reparação histórica, ainda teremos muito a conversar sobre isto. Mais um passo além de Pantera Negra, dos clipes de Beyoncé. E aguardem o filme da Viola Davis… novos imaginários estão sendo construídos através de narrativas midiáticas… por isto, incomoda tanto também. E esta conversa está só começando e ainda vai incomodar muito mais.
Por enquanto, digo: Obrigada, Disney… a Patricinha de 85 agradece que em 2023 é possível existir uma Ariel negra. Isto mostra o que aquela pequena menina negra tinha visão de futuro.