Infelizmente, vim ao mundo sem fé.
Digo infelizmente porque eu realmente invejo aqueles que acreditam na transcendência. Em qualquer transcendência: um Deus com “d” maiúsculo, uma energia que organiza o universo, um panteão de entidades, ou até mesmo a dança das constelações.
Fico ressentido de ter escolhido a astronomia em detrimento da astrologia. Algumas letras que fazem toda a diferença.
E esta minha descrença toda não é por falta de antecedentes. Meu pai, como toda a família dele, era católico. Minha mãe é espírita, assim como a minha avó materna foi. Aliás, esta minha avó era uma médium que escrevia, que transcrevia, na verdade, as mensagens enviadas pelos espíritos.
Em um momento delicado da minha vida, há muitos anos, ela – seu nome era Adélia – psicografou (espero ter acertado o termo, caro leitor) uma mensagem supostamente enviada pelo meu avô, seu falecido marido, que não cheguei a conhecer. Nesta carta, havia várias vezes menção à palavra “coragem”. Que eu precisava ser corajoso, que para enfrentar o que eu estava enfrentando era preciso coragem…
Ainda que um ateu convicto, não achei esta mensagem sem sentido. Não consegui acreditar que eram palavras do meu avô, mas entendi que poderia tomar este escrito como um conselho da minha vó para mim. Afinal, foi ela que escreveu aquelas palavras, foi a mão dela que segurou a caneta.
Desde então, coragem é uma palavra que me acompanha, tatuada em alguma parte de mim. Quando estou em dúvida sobre o que fazer, me pergunto qual seria a decisão mais corajosa. Até porque, boa parte das vezes, o que nos falta não é clareza sobre o rumo a tomar, mas a coragem mesmo de seguir por este caminho. Bem-aventurados os crentes, que se supõem acompanhados por estas veredas do insondável.
Muito se fala de uma citação, que talvez nem seja dele, em que Freud teria dito o quanto são corajosos aqueles que se sentem amados. Sendo essa frase de Freud ou não – teria sido psicografada, talvez? -, ela me faz muito sentido. Quando nos sabemos amados, fica mais fácil ser corajoso. É uma espécie de fé, na verdade: quando alguém nos ama, alguém também acredita na gente. O amor do outro zela por nós como uma entidade pagã.
Quando temos certeza de sermos amados, também nos causa menos conflito tomarmos decisões, pois temos a garantia de que, caso tudo der errado, ainda teremos um lugar para voltar.
Mesmo assim, estamos falando de coragem. Ainda que tenhamos uma certeza íntima do amor por nós, é impossível não termos que nos haver com um certo receio: quanto podemos ser diferentes, quanto podemos decepcionar quem nos ama e, mesmo assim, sermos acolhidos? Esta é uma questão que fica de fundo para todo filho com relação aos seus pais: quanto se pode cair longe da árvore, mas ainda se reconhecer como fruto dela?
Mas até aqui estamos falando de uma coragem um tanto confortável, que vai no fluxo do amor de que já temos segurança. Quero também falar de outra forma de ser corajoso, uma coragem radical.
Porque também há momentos na vida em que o nosso desejo íntimo não condiz com o que é esperado de nós pelos nossos pais, amigos ou pela própria sociedade. Aí a coisa fica bem mais complexa. É um salto que fazemos sem termos a certeza de que o outro lado será acolhedor. Ironicamente, é um salto de fé.
São decisões de vida que vão no contrafluxo, em que o próprio amor dos outros por nós é ficha de aposta. Não necessariamente são decisões más, ou que ferem alguém, mas são atitudes que tensionam a imagem que os outros fazem de nós, um reflexo no qual nos sentíamos confortáveis. Por outro lado, são essas as decisões que marcam a trajetória de uma vida: abandonar uma carreira de prestígio, cortar laços de amizade antigos, mudar-se de cidade por querer estar junto de alguém…
Estas escolhas também costumam reorganizar o tabuleiro da vida, uma vez que todas as peças estão em seus lugares umas em referência às outras. Quando alguém de um grupo ou de uma família muda, o jogo muda junto. E nem sempre todos estão dispostos a sustentar estas alterações na dinâmica do jogo.
Uma decisão corajosa vai sempre implicar uma perda. Se ela for no fluxo, perde-se a certeza íntima do amor dos outros. Se for no contrafluxo, pode-se perder até mesmo este amor.
Ambas são saltos, mas a coragem radical não pode prescindir de um tanto de fé, nem que seja uma crença no próprio desejo.
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