Crônica, provavelmente o gênero literário mais praticado no Brasil depois da poesia ruim de Instagram, é uma coisa meio difusa, ninguém sabe muito bem o que é, o que não impede muita gente de definir taxativamente o que ele não é.
Crônica não deveria ser política ou comentário do noticiário imediato, dizem muitos, porque aí já estamos no artigo de opinião (ou, pior ainda, nos textões de redes sociais). Mas sobre isso, eu já escrevi aqui mesmo na Sler (neste link, se me fizerem o favor). O que eu quero discutir aqui é outra opinião bastante disseminada sobre a natureza de como praticar a crônica, ou melhor, como não praticá-la, aquele conselho com ares de dogma, aquele mandamento com caráter de cláusula pétrea que vaticina: “fazer crônica sobre livro que leu, filme que viu, disco que ouviu é a forma mais preguiçosa e constrangedora de crônica”.
Me lembro de um jornalista colega meu na Zero Hora, uma figura particularmente pernóstica, haver comentado isso em termos parecidos com esse numa postagem que eu fiz no Facebook, mas não consegui achar o tal comentário, então preservo o nome da fonte para evitar dizer algo e ser desmentido pelo personagem. Mas posso apresentar outro exemplo sólido para defender que tese não é defendida apenas por jornalistas ranhetas, mas pelos próprios praticantes do ofício.
Meu amigo Gabriel Brust (também jornalista, também ranheta, mas meu amigo, como diria o músico Falcão) há muitos anos me contou que, ao fazer uma oficina de crônica ministrada numa edição da Festa Literária Internacional de Paraty pelo Joaquim Ferreira dos Santos ouviu dele um comentário semelhante: ficar escrevendo sobre filme, livro, música em espaço de crônica é uma forma fácil e meio preguiçosa de encontrar assunto e é, assim, o pior jeito possível de fazer crônica.
Não digo que o argumento de fundo que sustenta essa opinião não esteja correto, no fim das contas. Crônica, quando praticada em nível periódico, é um ofício brutal. A atual hipertrofia dos espaços de opinião em toda parte parece dizer o contrário, mas é meio que difícil você escrever um texto por semana sobre qualquer coisas que dê na sua veneta, e aqueles que se dedicam com seriedade ao ofício já terão sua própria cota de interditos e de restrições: não escrever muita bobagem, se possível; cuidar da forma e da articulação do texto para que o resultado, a ser lido, tenha fluência e encadeamento, e não pareça uma mensagem SMS que você escreveu bêbado pra alguém às 3h da manhã com o autocompletar ligado.
Há restrições que são da natureza do “veículo” para o qual se escreve, mesmo que ele não seja impresso: propriedade de vocabulário (não confundir com “sanitização do discurso”. Há algumas publicações para as quais seria muito cabível um texto com palavrões, outras não) e extensão do texto. Veículos impressos trabalham com um número de caracteres definido e se você estourar, pode estar se arriscando a deixar na mão de alguém na redação a tarefa de reduzir o que você escreveu, origem das infindáveis discussões entre cronistas e revisores. Tendo um texto por semana para escrever (alguns têm que escrever um por dia), não admira muitos cronistas transformarem em assunto mesmo as suas picuinhas com os revisores – Nelson Rodrigues inventou grandes histórias sobre os seus, por exemplo.
Logo, tendo essa quantidade de texto a produzir, não admira que muitos cronistas cedam às vezes a uma desculpa para um texto “fácil”. E esse já seria um argumento em favor da prática, o argumento do pragmatismo. Se você está escrevendo uma crônica por mês para sei lá onde, você tem como seguir a injunção dessa corrente e, se quiser, jamais escrever sobre livros e filmes e coisas do gênero, mas se você faz da crônica um ofício constante, bom aí está uma coisa que você vai ter de lidar: de vez em quando será necessário tomar atalhos para cumprir o compromisso assumido com o prazo (a outra possibilidade, a de não entregar o texto, não era algo que muita gente estava disposto a fazer nos meus tempos de profissional. Você põe um carimbo em você mesmo de não confiável e provavelmente na segunda vez em que isso acontece o lugar para o qual você escreve começa a procurar outra pessoa para o seu lugar).
Claro, esse e um argumento que apenas toca a questão do cronista, o cara que faz o texto. Há um argumento para o qual eu também me inclino na disposição de perdoar esse aparente pecado mortal da “crônica-resenha”: o fato de que ele é, para além de toda e qualquer consideração estética, útil. Sim, útil. Eu aqui seria um dos primeiros a defender, se necessário, o direito da arte de ser inútil, não há uma obrigação que ela “sirva” pra nada, e a própria ideia de que tudo precisa “servir” para alguma coisa é fruto, na concepção de muita gente melhor do que eu, como Paul Lafarge e Nuccio Ordine, por exemplo, como uma aplicação à fruição artística ou à sua produção aos ditames produtivistas do Capital, com amplos prejuízos para a arte como função. Mas o que me incomoda aqui, como na maioria das coisas, aliás, é o dogma, a obrigação. A arte não tem de ser útil. Ao mesmo tempo, não acho que ela deva ser imediatamente descartada quando, mesmo sem precisar, ainda assim é útil. E tudo, como sempre, depende do contexto.
Sendo o habitat por excelência da crônica a mídia de circulação ampla e popular, não me incomoda que ela desenvolva, sem que seja obrigada a isso, aspectos de alguma utilidade para aqueles que a leem , e sobre isso, gostaria de contar uma história.
Há alguns anos um amigo meu (sim, estou ciente do paradoxo de ser uma pessoa detestável e ainda assim ter muitos amigos, sei que sou sortudo por isso), o escritor baiano Rafael Rodrigues, contou uma história numa postagem de suas redes. Eu havia publicado uns anos antes num texto um trecho do conto “Os Contistas”, de Moacyr Scliar, talvez uma das maiores sátiras ao mundinho dos escritores já escritas na literatura nacional. Curioso pela menção, Rafael, que já conhecia Scliar, mas não esse conto, foi atrás. Um tempo depois, topou com o livro Contos Reunidos, do Scliar, e leu todos, enlevado pela descoberta de um corpus literário tão divertido e cheio de humor quanto aquele. E ele encerrava seu texto com uma conclamação da qual me recordo até hoje:
“E aí fica o pedido: compartilhem as leituras que vocês gostaram de fazer, ou estão gostando de fazer. Isso pode fazer com que alguém se interesse por um livro ou autor e acabe gostando também. Eu já conhecia o Scliar, claro, mas não esse conto. O mesmo vale para qualquer tipo de manifestação artística. Gostou de uma música, um disco, um filme, uma peça de teatro, um quadro, uma exposição, uma fotografia etc., compartilhe. Ajude a espalhar arte. O mundo fica maior, mais bonito e mais alegre – ou menos triste – com ela”.
Isso pra mim é um dos bons argumentos para deixar em paz os pobres cronistas preguiçosos que falam de livros, filmes, etc. Num mundo em que os espaços “institucionais” de validação da arte para as grandes massas encolheram (ou nunca foram muito voltados às massas de modo geral, como a academia), me parece que muita gente está um tanto perdida na profusão de opções à disposição do que ver, ler, ouvir para fazer sentido do mundo ou mesmo de seu próprio mundo interior. Assim, às vezes uma sugestão de um terceiro com quem alguém mantém um tênue vínculo, o da leitura periódica de alguns textos ali, outros aqui, a recomendação toma alguns ares de “curadoria”, essa palavra que foi tão vilipendiada nos últimos anos pela grande imprensa e suas pretensões de serem a “curadoria” dos seus leitores quando as próprias redações hoje não têm material humano ou condições de infraestrutura para realmente saber o bastante sobre o que importa a fim de servir de curadoria para alguém.
Mas eu dizia exatamente isso: entre tantas opiniões furadas, entre tantas fake news disseminadas por articulistas que parecem ter a vontade expressa de servir como caixa de ressonância para as piores tendências do mundo contemporâneo, o formato de um texto provocado por um livro não me parece mais preguiçoso, e sim um hiato inofensivo no aluvião inesgotável de chorume que se tornou a esfera pública. Quase como um haikai naquele breve e fugaz momento em que as máquinas e seus ruídos ensurdecedores parecem ter parado em miraculoso uníssono.
Não acho que seja por acaso que um dos formatos mais populares hoje em dia entre jovens escritores e, bem, vá lá, “produtores de conteúdo”, essa palavra horrenda, seja a newsletter por e-mail. E que uma grande variedade delas se estruture justamente como essa leitura comentada e compartilhada de alguns pontos luminosos nesse céu da cor de uma televisão sintonizada num canal fora do ar sobre nossas cabeças (gostou da frase? É a abertura magistral de Neuromancer, de William Gibson, e a deixo aqui como uma recomendação final para coroar este meu texto em defesa das crônicas que recomendam outras obras).
Foto da Capa: Reprodução da obra A leitora (Clara), de Federico Faruffin (1865)