No dia 22 de março, mais uma vez tivemos um pedido de instauração de um processo de impeachment contra um presidente. Até o momento em que escrevo este artigo, dia 25 de março de 2023, já são seis o número de pedidos de impeachment protocolizados contra o presidente Lula, neste primeiro trimestre que ainda não acabou. Um pedido de impeachment já é fato tão corriqueiro de ser noticiado no Brasil, não só em relação aos presidentes, mas também aos ministros do Supremo Tribunal Federal, que as pessoas nem ficam assim tão preocupadas ou atentas. Na maioria das vezes, tais processos não vão adiante, sequer “morrem na praia”, todavia não podemos esquecer que desde que o Brasil voltou a ser um estado democrático, já tivemos em um curto espaço de tempo dois presidentes destituídos pelo Congresso Nacional através de um impeachment.
Não vou entrar no mérito dos pedidos, e nem das condenações havidas anteriormente que acabaram por afastar outros presidentes, vou apenas explicar sucintamente como funcionariam tais processos à luz da Constituição Federal, do Regimento da Câmara dos Deputados e da Lei nº 1.079/1950, e do rito definido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), uma vez que por ocasião do último “impeachment” de um presidente no Brasil, a nossa corte Suprema Corte elaborou um minucioso rito processual, publicado no Informativo 812 do STF, em razão da ADPF 378.
Impeachment é um instituto de origem inglesa, e no âmbito federal significa uma acusação feita ao Presidente da República, ou ao vice-presidente, ou aos Ministros do Supremo Tribunal Federal, ou membros do Conselho Nacional de Justiça ou do Conselho Nacional do Ministério Público, ou ao Procurador-Geral da República, ou ao Advogado-Geral da União, por crimes de responsabilidade. Nada mais é do que um processo de impedimento dirigido a uma dessas pessoas, em que se busca a destituição do respectivo cargo.
A Constituição Federal define como crimes de responsabilidade “os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
I – a existência da União;
II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV – a segurança interna do País;
V – a probidade na administração;
VI – a lei orçamentária;
VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Em linhas sintéticas, de acordo com o Regimento da Câmara dos Deputados, qualquer cidadão poderá denunciar o Presidente, o Vice-Presidente ou o Ministro de Estado por crime de responsabilidade.
Se a denúncia for recebida pelo Presidente da Câmara, conforme disposto no regimento acima referido, a denúncia será lida no expediente da sessão seguinte e despachada à Comissão Especial eleita, da qual devem participar, observada a respectiva proporção, representantes de todos os partidos. Se o recebimento da denúncia for indeferido pelo Presidente da Câmara, caberá recurso ao plenário.
Na hipótese de recebimento da denúncia, o denunciado deverá manifestar-se, querendo, no prazo de dez sessões. A Comissão Especial acima mencionada emitirá seu parecer em cinco sessões contadas do oferecimento da manifestação do acusado ou do término do prazo de dez sessões acima mencionado. O parecer da Comissão Especial será lido no expediente da Câmara dos Deputados e publicado na íntegra, juntamente com a denúncia no Diário da Câmara dos Deputados. Haverá então a discussão do parecer, devendo o mesmo ser submetido à votação nominal, pelo processo dos Deputados. Se obtidos dois terços dos votos dos membros da Casa, será instaurado o processo de “impeachment”.
De acordo com a Constituição Federal, se for admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, ele será julgado perante o Senado Federal. Nessa circunstância, o presidente fica afastado de suas funções. Todavia, se o julgamento não estiver concluído, no prazo de cento e oitenta dias, cessará o afastamento do Presidente, embora o processo continue a correr. Sempre cabe lembrar que, na vigência do seu mandato, o presidente não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.
Em que pese a CF mencione expressamente no seu artigo 52 que, além da perda do cargo, haverá a inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis, no caso do impeachment da ex-presidente Dilma, não foi esse o entendimento do STF, o que causou grande estranheza no meio acadêmico e jurídico.
A este passo vale salientar que a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, define os crimes de responsabilidade, que ainda que simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo com a inabilitação para o exercício de qualquer função pública, e regula o respectivo processo de julgamento. A transcrição de tais crimes seria uma repetição fastidiosa do que contém a lei, e por isso saliento apenas a classificação dos Crimes, adotada na referida lei:
– Crimes contra a existência da União;
– Crimes contra o livre exercício dos poderes constitucionais;
– Crimes contra a segurança interna do país;
– Crimes contra a probidade na administração;
– Crimes conta a lei orçamentária;
– Crimes contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos;
– Crimes contra o cumprimento das decisões judiciárias
O pedido de impeachment do dia 22 março recente, conforme consta na petição da Denúncia, está fundamentado, de acordo com a CF, nos “atos do Presidente de República que atentem contra a Constituição Federal e, especificamente contra:
II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes Constitucionais das unidades da Federação;
V – a probidade da administração”
Outrossim, esse pedido de impeachment também está fundamentado com base nos Crimes contra o livre exercício dos poderes constitucionais e nos crimes contra a probidade na administração, previstos na Lei nº 1.079/1950, conforme detalhado a seguir:
“São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados:
3 – violar as imunidades asseguradas aos membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas dos Estados, da Câmara dos Vereadores do Distrito Federal e das Câmaras Municipais;
5 – opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sentenças;”
Com referência aos crimes contra a probidade na administração, o pedido de impeachment fundamenta-se no “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e ao decoro do cargo”.
Sob o ponto de vista fático, o denunciante alega, em síntese, que o presidente “manifesta profundo desprestígio ao Poder Judiciário” e que também realizou “manifestação pública de vingança”.
Rito processual definido pelo STF para o processo de impeachment da presidente Dilma
Atualmente está em tramitação uma nova “lei do impeachment”, mas vale ressaltar que se houver algum processo de impeachment, em um curto prazo, provavelmente seja seguido o mesmo rito processual estipulado pelo STF no STF no caso do impeachment da então presidente Dilma, parcialmente transcrito abaixo:
“1.1. Apresentada denúncia contra o Presidente da República por crime de responsabilidade, compete à Câmara dos Deputados autorizar a instauração de processo (art. 51, I, da CF/1988). A Câmara exerce, assim, um juízo eminentemente político sobre os fatos narrados, que constitui condição para o prosseguimento da denúncia. Ao Senado compete, privativamente, processar e julgar o Presidente (art. 52, I), locução que abrange a realização de um juízo inicial de instauração ou não do processo, isto é, de recebimento ou não da denúncia autorizada pela Câmara.
…
2.1. O rito do impeachment perante a Câmara, previsto na Lei nº 1.079/1950, partia do pressuposto de que a tal Casa caberia, nos termos da CF/1946, pronunciar-se sobre o mérito da acusação. Em razão disso, estabeleciam-se duas deliberações pelo Plenário da Câmara: a primeira quanto à admissibilidade da denúncia e a segunda quanto à sua procedência ou não. Havia, entre elas, exigência de dilação probatória. 2.2. Essa sistemática foi, em parte, revogada pela Constituição de 1988, que, conforme indicado acima, alterou o papel institucional da Câmara no impeachment do Presidente da República. Conforme indicado pelo STF e efetivamente seguido no caso Collor, o Plenário da Câmara deve deliberar uma única vez, por maioria qualificada de seus integrantes, sem necessitar, porém, desincumbir-se de grande ônus probatório. Afinal, compete a esta Casa Legislativa apenas autorizar ou não a instauração do processo (condição de procedibilidade).
2.3. A ampla defesa do acusado no rito da Câmara dos Deputados deve ser exercida no prazo de dez sessões (RI/CD, art. 218, § 4º), tal como decidido pelo STF no caso Collor (MS 21.564, Rel. para o acórdão Min. Carlos Velloso).
- RITO DO IMPEACHMENT NO SENADO (ITENS G E H DO PEDIDO CAUTELAR):
…
3.3. Conclui-se, assim, que a instauração do processo pelo Senado se dá por deliberação da maioria simples de seus membros, a partir de parecer elaborado por Comissão Especial.
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- NÃO É POSSÍVEL A APRESENTAÇÃO DE CANDIDATURAS OU CHAPAS AVULSAS PARA FORMAÇÃO DA COMISSÃO ESPECIAL (CAUTELAR INCIDENTAL
- A VOTAÇÃO PARA FORMAÇÃO DA COMISSÃO ESPECIAL SOMENTE PODE SE DAR POR VOTO ABERTO (CAUTELAR INCIDENTAL): No impeachment, todas as votações devem ser abertas, de modo a permitir maior transparência, controle dos representantes e legitimação do processo.
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- A DEFESA TEM DIREITO DE SE MANIFESTAR APÓS A ACUSAÇÃO (ITEM E DO PEDIDO CAUTELAR): No curso do procedimento de impeachment, o acusado tem a prerrogativa de se manifestar, de um modo geral, após a acusação.
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- NÃO HÁ DIREITO A DEFESA PRÉVIA (ITEM A DO PEDIDO CAUTELAR): A apresentação de defesa prévia não é uma exigência do princípio constitucional da ampla defesa: ela é exceção, e não a regra no processo penal. Não há, portanto, impedimento para que a primeira oportunidade de apresentação de defesa no processo penal comum se dê após o recebimento da denúncia
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- A PROPORCIONALIDADE NA FORMAÇÃO DA COMISSÃO ESPECIAL PODE SER AFERIDA EM RELAÇÃO A BLOCOS (ITEM D DO PEDIDO CAUTELAR): O art. 19 da Lei nº 1.079/1950, no ponto em que exige proporcionalidade na Comissão Especial da Câmara dos Deputados com base na participação dos partidos políticos, sem mencionar os blocos parlamentares, foi superado pelo regime constitucional de 1988. Este estabeleceu expressamente: (i) a possibilidade de se assegurar a representatividade por bloco (art. 58, § 1º) e (ii) a delegação da matéria ao Regimento Interno da Câmara (art. 58, caput). A opção pela aferição da proporcionalidade por bloco foi feita e vem sendo aplicada reiteradamente pela Câmara dos Deputados na formação de suas diversas Comissões, tendo sido seguida, inclusive, no caso Collor. Improcedência do pedido.
- OS SENADORES NÃO PRECISAM SE APARTAR DA FUNÇÃO ACUSATÓRIA (ITEM J DO PEDIDO CAUTELAR): O procedimento acusatório estabelecido na Lei nº 1.079/1950, parcialmente recepcionado pela CF/1988, não impede que o Senado adote as medidas necessárias à apuração de crimes de responsabilidade, inclusive no que concerne à produção de provas, função que pode ser desempenhada de forma livre e independente.
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- É POSSÍVEL A APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DOS REGIMENTOS INTERNOS DA CÂMARA E DO SENADO (ITEM B DO PEDIDO CAUTELAR): A aplicação subsidiária do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e do Senado ao processamento e julgamento do impeachment não viola a reserva de lei especial imposta pelo art. 85, parágrafo único, da Constituição, desde que as normas regimentais sejam compatíveis com os preceitos legais e constitucionais pertinentes, limitando-se a disciplinar questões interna corporis. Improcedência do pedido.
- O INTERROGATÓRIO DEVE SER O ATO FINAL DA INSTRUÇÃO PROBATÓRIA (ITEM F DO PEDIDO CAUTELAR):
(ADPF 378 MC, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-043 DIVULG 07-03-2016 PUBLIC 08-03-2016)”
Saliento, outrossim, que para uma decisão final favorável a um impeachment são necessários dois terços dos votos do Senado Federal. Caso o impeachment não seja aprovado, o presidente deve ser reconduzido ao cargo.
Sem entrar no mérito dos atuais pedidos de impeachment, não acredito que nesse momento vão prosperar, mas obviamente eles não constituem um bom sinalizador para o governo. Isso causaria instabilidade e uma forte crise econômica, o que seria desastroso para o país já cheio de problemas, que acabou de atravessar por uma pandemia danosa, trágica e funesta em todos os aspectos, e que enfrenta os reflexos de uma crise mundial em decorrência do conflito entre a Rússia e a Ucrânia e de uma crise no sistema financeiro internacional. O objetivo deste artigo é somente esclarecer como funcionaria sob o ponto de vista processual um processo de impeachment se algum desses seis pedidos fosse aceito pelo presidente da Câmara dos Deputados.