O negro treme, o negro treme porque sente frio; o menino treme porque tem medo do negro; o negro treme de frio, aquele frio de torcer os ossos; o belo menino treme pois acha que o negro treme de raiva; o menino branco corre pra os braços da mãe: mamãe, o negro vai me comer.
Frantz Fanon
O psicanalista só se sustenta se não tiver contas a ajustar com seu ser.
Jacques Lacan
Eu devia ter uns sete anos. Estávamos almoçando na casa dos meus avós: eu, minha mãe ao meu lado, minha avó à minha frente e meu avô sentado na cabeceira da mesa, austero e silencioso, como me recordo dele. Não lembro se havia mais alguém sentado conosco.
Ao lado, em pé, estava G., indo e vindo da cozinha com seus quitutes. G. era uma mulher preta, empregada da família havia muitos anos e sempre lembrada por minha mãe com carinho. Na casa dos meus avós, lembro de G. sorrindo e sempre em silêncio. Não me recordo da sua voz. Estava ora na cozinha, ora na sala de jantar, servindo à mesa. Não lembro dela sentada conosco, ou em outras partes da casa. Ocorre a mim que ela também devia passar pelos banheiros. O de dentro da casa para limpar, e o de fora, para suas próprias necessidades.
Nesse dia, pela manhã, eu havia ido à cabeleireira cortar os cachos que insistiam em crescer na minha cabeça, à minha revelia. Para mim, desde muito cedo, meu cabelo era um problema. Seja porque eu os queria compridos e minha mãe, muito curtos, seja porque não brilhavam aos olhos do Outro. Meus cabelos eram rebeldes, madeixas que não se disciplinavam, ao contrário de mim. Eu sonhava em ter cabelos lisos como os de minhas primas. Pareciam muito mais ajeitados que os meus. Enfim, parei de brigar tanto com meus cabelos quando me movimentei no amor.
Voltemos ao almoço. Estávamos à mesa e alguém me perguntou se eu havia gostado do novo corte nos meus cabelos. Nessa hora, G., por quem eu sentia carinho e respeito, estava, como sempre, servindo. E, na minha lembrança, sorrindo.
Frente à pergunta, respondi às gargalhadas e sem pensar, bem como uma criança de sete anos: “Gostei, pelo menos não ficou que nem cabelo de nego”.
Lembro que, assim que falei, senti um estranhamento em mim mesma. Eu não era muito de falar, ainda mais desse modo e na frente dos meus avós. Estava mais para a envergonhada do que para a desbocada.
Na hora, meu avô me lançou um olhar severo, como nunca havia recebido dele. Em seguida, minha mãe também arregalou seus olhos já grandes para mim. Um silêncio profundo se estabeleceu durante o resto do almoço e eu segui sem entender o motivo. Lembro de G. ali, com seus cabelos bem crespos. E sorrindo…
Naquele momento, mesmo me estranhando, não entendi nem a severidade do olhar, nem o silêncio. Ao contrário, eu esperava risos. Era comum escutar de algumas mulheres da família – brancas – naquela mesma mesa, no café da tarde, quando G. ou J. (a sucessora de G., também uma mulher preta) já tinham ido para suas casas, frases do tipo:
– “Essa nega acha que é branca!”
– “Onde se viu ela querer comprar uma geladeira igual a nossa?”
– “Nego quando não caga na entrada, caga na saída”.
Com essas e outras frases, essas mulheres riam alto, num deboche desavergonhado. Cúmplice. Pactuado. Por que eu provoquei o oposto?
Minha mãe me explicou. Muito brava, após o almoço, ela me levou para o quarto onde dormíamos e falou: “Como tu falas uma coisa dessas na mesa do almoço e na frente da G.? E de teus avós?” Naquele momento, toda a vergonha do mundo se abateu sobre mim.
Minha mãe gosta até hoje de contar uma história sobre meu avô e seu N., homem preto, jardineiro da casa, já de cabelos brancos. Eu achava que ele tivesse já uns 90 anos, porque meu avô dizia: “Nego quando pinta, 3 vezes 30”.
Minha mãe lembra: “Quando eu era criança, todo dia de Reis, seu avô recebia o seu N., que tocava viola e cantava o Terno de Reis. Seu avô o convidava para entrar, sentar na varanda de trás e com ele tomava cachaça. Bebiam juntos e cantavam”. Minha mãe narra até hoje essa história com carinho. Ela se orgulha do pai dela porque nesse dia recebia o seu N. como gente. E bebiam, sentados juntos. Nos outros dias, ele não passava do jardim. Disso eu lembro bem. Todas as manhãs, tirava os matos das plantas e os bichos dos morangos e da grande árvore de fruta do conde. Na hora do almoço, recebia um prato de comida e comia, sentado na escada da varanda. Após o almoço, fazia uma sesta embaixo de uma árvore, com a cabeça deitada em uma pedra. Dessa última cena, eu não lembro. Minha mãe que me contou, quando da escrita desse texto. Ela disse que perguntava à sua irmã mais velha por que seu N. deitava-se numa pedra. Ambas não tinham resposta. Talvez nem palavras.
Mas, todo dia 6 de janeiro, seu N. virava rei.
Naquele almoço, eu fiz algo cair no meio da sala de jantar da grande, linda e amada casa dos meus avós.
Hoje, pensando com algumas leituras, sensações e lembranças que me acompanham, entendo que o racismo visa sustentar o imaginário de uma diferença verticalizada. Os superiores (brancos) versus os inferiores (negros). Superioridade imaginária de uma branquitude hipócrita porque se acha mais educada, mais civilizada, mais naturalmente rica e bonita com seus cabelos lisos.
Minha mãe, ao lembrar a história do seu N., de fato se emociona, recorda com saudade dessa cena de sua infância que se repetia todo ano e ainda hoje canta emocionada o terno de Reis. Até o momento em que eu a questiono por que era apenas um dia que o meu avô e seu N. sentavam e bebiam juntos, a ela não parecia estranho. O racismo estava e está naturalizado, é estrutural e, talvez, sirva à estruturação pelas identificações construídas em torno de um pai que se quer manter dono da horda.
Meu avô tinha um apelido que significa “todos” em italiano. Tradução que eu só pude escutar há alguns anos em análise, ainda que soubesse desde criança o quanto meu avô era – e permanece sendo – quase-tudo e quase-todos para muitos da família.
A hipocrisia, o deboche e o escárnio são traços identificatórios dessa imaginária superioridade branca. E estão autorizados a virem à tona nesse pacto que quer denegar o que a todos iguala – todos os corpos morrem, negros e brancos. O corpo negro tenta se matar antes, de um jeito ou de outro.
Reconhecer o racismo odioso e perverso que habita a nossa pele branca, herança indelével da nossa família branca, é se deparar com um paradoxo duro – a G. e o seu N., empregados queridos pela família, tinham um corpo que rapidamente virava objeto de violência. Assim como minha mãe, algumas tias, tios e primos, queridos e amados de um tempo de infância que não volta mais, eram capazes de proferir, sem vergonha, desde que entre seus semelhantes, as piadas e falas mais odiosas e preconceituosas contra todos e todas que lhes remetessem à sua própria fragilidade recalcada. Barbárie simbólica que precisava se manter velada para sustentar a frágil imagem do branco educado.
Como nos coloca Isildinha,
No imaginário social produzido pela sociedade branca e escravista, o negro funcionou como significante catalisador dos fantasmas e perversidades dessa mesma sociedade que, exteriorizando esses núcleos internos que aterrorizam, construiu representações em que tais horrores são presentificados no corpo negro (Nogueira, 2020, p. 129).
Talvez pelos meus antigos cachos, talvez pelas marcas da vergonha desse dia, talvez pelo posicionamento à esquerda que fui sustentando à mesa e fora dela, fui me dando conta de que o amor tem limites. As marcas da vergonha podem libertar. Não-todo. Nem sem dor. Ou é isso, ou é o pior. Isso não me redime da minha fala racista, nem de outras que posso ter cometido ou ainda posso cometer. O racismo é estrutural. A hipocrisia também. Como nos diz Isildinha, é preciso que os de pele branca estejam reunidos com os de pele negra, reconhecendo e suportando a angústia que esse encontro pode causar. Que falemos sobre essas dores que nos atravessam a todos, ainda que de modos bem diferentes.
Na casa dos meus avós, as falas racistas estavam autorizadas a aparecer. Mas não na frente das pessoas negras, que lá passavam seus dias na cozinha, preparando quitutes para satisfazer os corpos brancos, ou limpando a merda que saía dos mesmos corpos, feita só no banheiro de dentro. Essa merda não faz distinção de cor.
Eu não posso imaginar o que G. sentiu com a minha fala. Carreguei por muitos anos essa vergonha que agora exponho. A mim, é impossível sentir a exclusão e a violência que vive e sente um sujeito de pele negra todos os dias perante essa austeridade naturalizada do branco, que se acha pai de todos.
Na minha lembrança, G. sorriu para mim com o canto da boca logo após eu pronunciar o horror. Após eu, sem saber o que sabia, revelar o que se queria esconder. Eu quero acreditar que G. sorria porque era a mais sabida dali.
Nota: Texto produzido e apresentado para o encontro dos Seminários Clínicos de 7/10/23, coordenado pelo colega Norton Dal Follo da Rosa Jr.
Referências:
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
LACAN. J. O seminário – livro 17 – o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
NOGUEIRA, I. B. A cor do Inconsciente. São Paulo: Perspectiva, 2021.
Daniela Bridon é psicanalista, doutora em Psicologia e membro da APPOA (email, @DanielaBridon, @psicanalise_na_vida)
Foto da Capa: Reprodução
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