Chegou aquela época do ano em que a gente tem que adivinhar quem está por trás da máscara. Não, não estou falando da eleição, com aquele monte de gente bizarra se vestindo de salvador da pátria. É o contrário disso, estou falando do tal Halloween, com nenhum santo colocando pra fora toda a angústia de ser humano em fantasias muitas vezes de gosto discutível.
A festa, que muitos dizem ser americana e que os brasileiros colonizados imitam, não é nem americana de origem, muito menos é devidamente imitada por aqui. Deixa eu explicar antes de me cancelar, please.
Pela minha extensa pesquisa de alguns minutos, distrações com memes e labirintos da internet, descobri que tanto o Halloween americano quanto o Dia de Los Muertos mexicano não são a mesma coisa, mas que os dois sofreram uma fusão forçada para se ajustar, ou melhor, se cristianizar. Sim, a igreja, através dos colonizadores, meteu a água benta no uísque e na tequila alheia.
Halloween é uma festa de origem celta, que foi levada para os Estados Unidos pelos irlandeses, e virou com o tempo a maior festa festiva americana, e hoje tenta ser mais um carnaval fora de época no Brasil, que não nega nenhuma oportunidade pra comemorar qualquer coisa. E assim, na fusão brasileira, incorporou um pouco do nosso folclore, declarando desde 2003 o dia 31 de outubro como o Dia do Saci.
A diferença básica entre o Halloween americano e o Dia do Saci é a seriedade do negócio. A festa americana é levada tão a sério que assusta mais do que as fantasias. Festas super elaboradas, caseiras, nas escolas, locais de trabalho, na Casa Branca e na decoração das casas. Produtos começam a ser vendidos meses antes e tudo é tão decorado que a gente enjoa de ver abóboras e esqueletos de mentira, como se os monstros e guerras reais não existissem.
Uma das tradições que está com os dias contados é andar pelas vizinhanças pedindo doces ou travessuras. Não apenas pela quase inexistência de doces veganos, glúten e lactose free orgânicos, mas também porque não é mais seguro – e talvez nunca tenha sido – andar pela vizinhança pedindo qualquer coisa.
Poucos anos atrás, vivendo em Seattle, ficamos cuidando da casa de um casal de amigos que estava viajando. Cuidando, modo de dizer, porque estávamos gravando um programa de pesca e o dinheiro acabou, e eles nos ofereceram a casa para cuidar e a gente poder tomar banho e dormir numa cama por alguns meses. Fato é que aceitamos e estávamos felizes de ter um teto sólido depois de meses viajando pelos campings e rios americanos. Nisso, chegou a noite do Halloween e descobrimos que a gente não tinha nenhum doce em casa, caso alguma criança batesse na porta. Qual seria a travessura e consequência desse ato falho imperdoável na cultura gringa?
Pensamos um pouco e resolvemos desligar todas as luzes e assistir filmes na TV com as cortinas fechadas, pra ninguém amaldiçoar a casa dos amigos pra sempre. Mal tinha começado o filme, ouvimos batidas na porta. Beleza, vamos ficar quietos aqui e fingir que não tem ninguém, pensamos muito ingenuamente. As batidas continuaram, cada vez mais insistentes. Na nossa contínua ingenuidade, pegamos umas balas de menta nada atrativas para as crianças, colocamos num pote e fomos para a porta cumprir nosso dever cívico americano. Olhei pelo olho mágico da porta e vi um homem, sério, que imaginei ser o pai das crianças, louco pra pegar os doces e voltar pra casa com seus monstrinhos super dopaminados e glicosados.
Como a gente estava ainda gravando o programa de pesca, imaginamos, mais do que ingênuos agora, crédulos da nossa experiência ralouíneca, que seria legal mostrar um típico doces-ou-travessuras americano no meio do programa. De pesca. Deixo aqui um tempo e linhas pra vocês refletirem sobre minhas escolhas de vida e roteiro.
Finalmente abrimos a porta, eu com o pote de balas de menta e meu parceiro de pesca, roteiro e escolhas infelizes, com uma câmera GoPro na mão, para filmar a alegria das crianças. Com as balas de menta.
Surpresa, surpresa! Dois homens fantasiados de policiais surgem quando abro a porta. Eu, ainda achando que eles estavam fantasiados de cops, continuei rindo, até levar uma bordoada em inglês aqui traduzido: “Por favor, desligue essa câmera, estamos em uma investigação ativa e não podemos ser filmados”. A nossa alegria foi meio que desaparecendo naquela fantasia que era na verdade uma batida policial.
Do riso ao pânico, respondi às perguntas dos policiais, que queriam saber se a gente tinha visto alguém suspeito ou correndo pela rua. Eu, mais estupidamente ainda, disse que só tinha visto o meu marido, que saía para correr todo final de tarde. Eles gostaram mais da resposta do que do fato de ter apenas balas de menta para oferecer para as crianças e deduziram que a gente não tinha capacidade de ter cometido qualquer tipo de crime. Agradeceram, avisaram pra gente ficar safe e informar imediatamente qualquer movimento estranho, em plena noite de mascarados de todas as idades pela rua.
No dia seguinte, descobrimos que todo aquele fiasco era porque alguém, que provavelmente bebeu demais e, fugindo da polícia, largou o carro ligado no meio daquela rua pacata, sumiu na noite como um fantasma ou Saci fazendo suas travessuras.
Desde então, aprendi minha lição e nunca mais ofereci minhas balas de menta pra ninguém. Até porque Halloween é pros gringos e Saci sim, é pegadinha e fantasia pros fortes.
Foto da Capa: Gerada por IA / Freepik
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