Acredito que Sebastião Salgado, que nos deixou semana passada, era um moderno, um sujeito crente na possibilidade de desenvolvimento positivo da experiência histórica humana. Também acredito que é por conta dessa modernidade, dessa centralidade na potencialidade Humana (e não na capacidade da tecnologia, como se vivencia atualmente) que as peças do fotógrafo me remetem à estética renascentista: o Humano é imponente e é a centralidade da cena. Daí, não são poucas as vezes que um produto da câmera do artista me expede a um elemento ou outro de pinturas ou esculturas de Michelangelo. Todavia, como é inerente aos modernos, creio que também para ele esse progresso não segue um caminho de flores: seja o cada um por si e o mercado por todos, em Adam Smith; seja o périplo do Fausto, em Goethe; ou seja as contradições dialéticas da história em Hegel ou em Marx, o avanço civilizatório é conflituoso.
Destacando as séries, para mim, mais significativas, Serra Pelada, Terra e Trabalhadores, o exposto não é o registro que entretém: não tira o ver do olhar. A imagem é uma função que estabelece uma conexão entre coisas que não são, naturalmente, unidas: realidade e esperança. Pontifica o conjunto de credos que embalaram as expectativas no desenvolvimento histórico da experiência humana aos sentimentos que nos movem como indivíduos e agentes no mundo. A reflexão sobre a miséria da exploração aviltante do trabalho, a geração de valiosas riquezas em decorrência de grotescas formas de exploração, não se associa ao conjunto de nossas cogitações de forma espontânea. Desse ponto, a importância de artistas como Sebastião Salgado. Pois, enquanto moderno, não perde a esperança que, a despeito da natureza terrível de nossa condição humana, é inerente a essa mesma condição, situada historicamente, a superação de nossa pequenez. Entendo que o artista e sua obra querem nos ligar ao projeto de emancipação civilizatória, ao projeto de ascensão ética próprio da modernidade, querem conectar nossas emoções aos projetos que visam a superação de um presente limitado à construção de um futuro próspero: ali não tem distopia.
Para ilustrar minha opinião, dentre milhares de fotos tiradas por Sebastião Salgado, das dúzias que vi e dentre as que manipulei impressas em rotogravuras, destaco em particular um quadro do volume Serra Pelada (também encontrado no álbum Gold) que comprei há décadas num bazar de estudantes em prol de seus movimentos.
Na foto, há um trabalhador ao centro, aparentando estar só; dorso desnudo atravessado pelo farrapo de pano que restou de uma camisa, seu oponente lhe aponta uma arma de cano longo, carrega nos quadris cinturão repleto de balas, traja boné, gandola, calças e botas: corpo uniformizado, discrepante da diversa seminudez dos corpos mineradores. Por esses elementos, a história contada pela gravura narraria um mundo que se conserva ao passar dos tempos.
Porém, num plano um pouco acima, parado e de braços cruzados, um personagem emblemático, encapuzado, observa o embate instaurado, esboçando um sorriso impávido como de quem antecipa o desfecho de uma sina trágica. Então, nos damos conta de que o insurreto esfarrapado não é o fraco da cena: é um gigante negro. O braço armado do Estado, que tenta lhe acossar, é menor que ele e, nem se quer, consegue ocupar por completo o padrão que o indumenta. O enigmático ente de capuz parece vaticinar que o fado que se consumará é a derrocada da opressão pelos golpes da mão de obra. Atentos, percebemos que o insurgente não está de tudo isolado, por trás dele, à esquerda, outro vem se agachando, mirando o despótico sem ser visto; no plano acima desses todos, na linha do horizonte, trabalhadores cerram olhares sobre a disputa e arqueiam seus corpos como de quem espera o sinal para acorrer.
E, observando com atenção, se vê na expressão do agente estatal a frágil convicção em seu suposto poder.
Reitero: Sebastião Salgado era um moderno. Parece defender que é a humanidade que há em nós que vai nos redimir de nossa exiguidade. Não será nenhuma instituição. Ele, que viveu ações revolucionárias, partidos totalizantes e extremas situações sociais, não tirava do foco do olhar o cerne, ambíguo, de nossa existência social: o puramente humano.
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Foto da Capa: Divulgação