O falecido educador Rubem Alves (1933-2014) disse certa vez que, se um homem fosse transportado numa máquina do tempo do século XVI para hoje e caísse numa cozinha, ele jamais identificaria o lugar. Mas se ele caísse numa sala de aula não teria nenhuma dificuldade em identificá-la! Este rápido exercício ficcional que nos propõe este professor é de simples compreensão: a escola praticamente não transformou suas estruturas (arquitetônicas e outras) desde cinco séculos, o que ratifica a certeza de se tratar de uma instituição sumamente conservadora. E ela o é! Mas conservador aqui não significa reacionarismo político ou social, mas a crença de que, em qualquer ato educativo, institucionalmente formalizado, conformando relações intergeracionais, algo precisa ser conservado. A questão toda é saber o quê devemos “conservar” e o quê devemos “transformar”.
Em 1981, o professor Maurício Tragtemberg apresentou uma conferência no I Seminário de Educação Brasileira, originalmente apresentado na Revista Educação e Sociedade n° 3, contundentemente intitulado “A delinquência acadêmica”. “Delinquência acadêmica” é o nome da falta de audácia que caracteriza a nossa profissão, distanciando-a do adágio iluminista cunhado por Kant, Sapere Aude ! (Ousa servir-te de tua razão!): “A bem da verdade, diz Tragtemberg, raramente a audácia caracterizou a profissão acadêmica. É a razão pela qual os filósofos da revolução francesa se autodenominavam de ‘philosophes’ e não de ‘acadêmicos’. (…) A não preocupação com as finalidades sociais do conhecimento produzido, continua, se constitui em fator de delinquência acadêmica ou da traição do intelectual”. Aliás, a este respeito, ao analisar a “crise de consciência” dos intelectuais americanos que deram o aval “à escalada” no Vietnã, Horowitz notara que a disposição que eles revelavam no planejamento do genocídio estava vinculada à sua formação, à sua competência para discutir meios, mas sem nunca questionar os fins!
Neste caso, e se nós ousássemos “tomar o Réquiem de Mozart como paradigma do ser”? Castoriadis, que propõe tal “ousadia”, apenas indica com este paradigma, que lógicas identitárias, injunções racionalistas e pragmáticas ou razões instrumentais não recobrem o conjunto da grandeza humana (assim como de sua miséria moral), mas a partir dela poderíamos imaginar algumas questões (que talvez nem façam mais sentido por causa do programa de insensibilização acadêmica a que fomos todos submetidos) e nos perguntar:
- E se entendêssemos que toda ciência e todo saber têm um limite de eficácia e que ultrapassado este limite eles produzem efeitos contrários aos pretendidos (sociedades que produzem milhões de automóveis para “facilitar” deslocamentos humanos e provocam congestionamentos desumanos, para dar apenas um exemplo)? Será que isto faria com que a Universidade refletisse mais sobre sua obsessão inovadora e sua concentração em desenvolvimentos tecnológicos e entendesse que um mundo mais abarrotado de tecnologia é um mundo mais esvaziado de pessoas? Que a ciência médica que prolonga indefinidamente a vida, na expectativa final de superar a morte física, terminará por fazer com que uma vida eternizada perca todo seu significado e valor (algo que não acaba nunca, uma inesgotável abundância não tem nenhum valor relativo!)
- E se nós compreendêssemos que o papel da literatura não é formar professores para dar aulas sobre estilos de época, movimentos literários e literaturas nacionais, mas para formar pessoas que, através da leitura, compreendem e aliviam a dor de sua própria existência e atribuem significações diferentes às suas experiências?
- Que o papel da educação não é preparar professores para dar aulas em escolas públicas ou privadas, mas fazê-los entender que eles se situam numa encruzilhada do tempo: que antes deles existiram pessoas que produziram significados para o mundo comum, e depois deles outras pessoas produzirão novos significados e que, só assim, eles podem compreender o que significa ser “professor”? Será que desta forma, a Universidade entenderia seu papel de ponto de intersecção e encontro entre mundos que já não existem mais e mundos que não existem ainda?
- E se nós percebêssemos que a educação trata do SER, a instrução trata do SABER e que a tarefa da Universidade não é apenas a segunda? O que significa que ela teria um papel importante em nossa formação, numa época de transição moral, de desânimo civil, de dissimulação intelectual, de baixa expectativa no futuro, de demissão pública e privatização da vida.
- E se o aluno de Medicina, tendo aulas com o de História, Filosofia e Física, compreendesse, numa sensibilidade inter e transdisciplinar, que não existe cuidado com a vida independente das condições sociais em que vive o homem e das expectativas que ele alimenta, assim como o aluno de História saberia que uma história da natureza só foi possível quando a Natureza se tornou um objeto de conhecimento e exploração? E se o aluno de Física lesse a peça A Vida de Galileu (B. Brecht), junto com o aluno de Teatro, e aprendesse que toda ciência comporta uma ética correspondente, e que ciência sem consciência (moral) é uma das formas da “delinquência acadêmica”?
- E se, finalmente, compreendêssemos que o papel da crítica é nos situar num espaço intervalar entre o que existe e o que poderia ser, entre um mundo tido como inaceitável humanamente e um mundo imaginado e, talvez, até possível? Neste caso, também poderíamos compreender que uma Universidade que aderiu completamente aos negócios e ao mercado perdeu sua função crítica.
Tudo isto pode parecer excessivamente idealista, delirante, carregado de expectativas irrealistas e românticas sobre a instituição universitária (tanto quanto irrealista é querer estar nos primeiros lugares da lista da Hight Education! Delírio por delírio, eu também tenho direito ao meu), mas isto nos ajuda a pensar que projetos de gestão são apenas… projetos de gestão, não são nem o conteúdo nem o sentido da coisa que vai ser gerida
O que acabo de sugerir é que a grande inovação – uso a expressão apenas para agradar a meus detratores!- não é querer imitar instituições, contextos e métodos que não são os nossos, comparar-se com universidades estrangeiras a partir de critérios estranhos, irrelevantes e elaborados à revelia dos avaliados, mas recusar esta adesão impensada ao “presente”, como se não houvesse futuro para além dos dados-já-dados, ou todo futuro não passasse de desdobramento linear e previsível do que somos agora. Mudar de paradigma (Deus me castigará pela banalidade da expressão!), para mim, é sair deste escopo: é não permitir pensar a Universidade apenas a partir dos conceitos e categorias que ela mesma nos fornece (privado, público, ranqueamento, competitividade, internacionalização, racionalização dos meios, inovação tecnológica, mercado etc.) impedindo-nos, assim, de sair dos esquadros conceituais que ela determina e institucionaliza. Há momento, parafraseio um autor, em que, para que possamos continuar a pensar e a ver, mesmo como instituição, é necessário mudar a forma de ver e pensar para que não destruamos os dois.
Meu temor, de resto, é que um homenzinho do século XVII caia do nada em minha sala de aula e reconheça de imediato o lugar onde caiu e, ainda por cima, tenha a petulância de me dizer: “Inacreditável! Nada mudou! E nós, homens daquele século, acreditávamos que Progresso era um conceito positivo”.
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