Sou apaixonada por Porto Alegre. Embora eu não conheça muito das suas ruas, dos seus pontos turísticos e das pessoas que a habitam, sou obcecada por suas histórias. Gosto do Mercado Público, da Rua dos Andradas, da Riachuelo. A Casa de Cultura Mário Quintana me encanta. A atmosfera do Centro Histórico exala cultura, com suas construções peculiares e um magnetismo que convida a explorar cada canto. Definitivamente, não hesito em dizer que Porto Alegre é demais!
Depois que passei a centrar os meus romances na capital gaúcha, tenho me dedicado a explorar cada nuance dessa cidade que guarda, em suas ruas e construções, o encontro entre o passado e o presente. Porto Alegre não é apenas um cenário onde os meus personagens perambulam livremente, resolvendo os seus conflitos, mas uma fonte inesgotável de inspiração onde cada esquina entrelaça um tempo distante com as transformações sociais que moldam a cidade contemporânea.
Estudando os eventos que moldaram a história de Porto Alegre, deparei-me diversas vezes com um crime bárbaro ocorrido em meados do século XIX, na atual Rua Coronel Fernando Machado, anteriormente conhecida como Rua do Arvoredo. De acordo com documentos e reportagens da época, os crimes atribuídos a José Ramos e Catarina Palse envolviam assassinatos cometidos para a produção de linguiças, um caso tão macabro quanto chocante. Embora real, o caso adquiriu contornos de lenda urbana ao longo do tempo, mantendo-se viva no imaginário popular. É como se o fato tivesse transcendido os registros históricos para se tornar parte do folclore da cidade, ecoando nas narrativas que misturam fatos e mistérios sobre Porto Alegre.
Recentemente, o autor gaúcho Tailor Diniz trouxe à tona um dos episódios mais sombrios de Porto Alegre em seu livro Os Canibais da Rua do Arvoredo. Finalista do Prêmio Jabuti, a obra mistura elementos de mistério, terror e sobrenatural para recontar, com uma abordagem contemporânea, os infames crimes de José Ramos e Catarina Palse. Na narrativa, um jovem casal de universitários, também chamado José e Catarina, se muda para a casa onde os crimes ocorreram no século XIX. Sem saber do passado sinistro do lugar, eles começam a experimentar mudanças perturbadoras em suas personalidades. A atmosfera da casa parece agir como um catalisador, e, pouco a pouco, os dois são tomados por comportamentos que refletem os dos assassinos que ali viveram.
Catarina, estudante de Medicina, sente-se inexplicavelmente atraída pelo porão da casa, onde encontra antigos instrumentos que teriam sido usados nos crimes do século XIX. Tomada por uma força perturbadora, ela passa a seduzir suas vítimas, conduzindo-as até o local com frieza calculada. Com a cumplicidade de José, aluno do curso de gastronomia, os assassinatos são realizados de maneira meticulosa, e os corpos das vítimas são transformados em suculentos bifes, vendidos a um comerciante local sem que ele sequer suspeite da origem macabra da mercadoria. O terror psicológico cresce à medida que a narrativa avança, com os personagens lutando contra suas próprias consciências enquanto a influência dos espíritos dos antigos moradores se torna mais intensa.
O narrador, um observador onisciente, é membro de uma organização secreta com planos de dominar o mundo por meio de chips ocultos em vacinas. A trama, uma sátira mordaz, reflete e exagera acontecimentos recentes, explorando com ironia as teorias da conspiração e os medos que moldam nossa sociedade.
Tailor Diniz cria um ambiente perturbador, onde a casa na Rua do Arvoredo emerge como um personagem vivo, impregnado de memórias sombrias, traumas e horrores latentes. Ao entrelaçar a macabra história do século XIX com uma trama contemporânea cheia de tensão, Os Canibais da Rua do Arvoredo instiga os leitores a refletirem sobre a persistência do passado e sua habilidade de moldar o presente de maneiras inesperadas. A narrativa nos transporta para o coração de uma Porto Alegre densa de mistérios, expondo camadas ocultas de sua história e reforçando sua presença como cenário e protagonista.
Todos os textos de Andréia Schefer estão AQUI.
Foto da Capa: Ilustração da capa do livro "Os Canibais da Rua do Arvoredo", de Tailor Diniz.