Dezembro de 2023. Desde 2019, eu não reclamo mais sobre o ano que se passou. Frases como “que ano difícil esse” ou “esse foi o ano mais difícil da minha vida” passaram a estar fora das avaliações anuais. Até porque, amigos… cada ano que se passou depois de 2019, pra mim, foi eita atrás de vixe! (Vejam: isso não foi uma reclamação, só uma constatação)
Este foi um ano de muitas chuvas e a metáfora com águas ou quando as mesmas saem fora do seu curso, especialmente em 2023, tornaram a comparação com o que vivemos nestes últimos meses em nosso estado (dadas as devidas proporções) mais compreensível.
Basta alguns minutos para que as águas, aquelas tranquilas e que seguem sempre (quase sempre) no mesmo fluxo, encontrem força em si mesmas para emergir, para expandir e para levar consigo todo o seu entorno.
As águas das chuvas que nos assolaram levaram para os cursos dos rios uma força potencialmente avassaladora. Do estável para o incerto, se deu numa fração de segundos.
E o que é a vida senão esta comparação?
Em 2023 eu vivi diferentes desaguares de água em minha vida, sendo que a tempestade iniciou em março e virou calmaria nesse final deste ano. Selecionei três momentos que para mim foram desaguar de água, foram enchentes e renovação. Não desejo ser referência para ninguém, apenas compartilho o que para minha existência, significou e que talvez para ti, querido leitor, possa fazer sentido neste momento do ano.
Primeira chuva: as águas da minha vida encheram meu curso e saí de mim, me perdi nos atalhos dos percursos abertos a força da necessidade de mudança: diante dessa fase uma sábia Yá me disse que eu necessitava olhar no espelho novamente, que ao olhar-me eu aprenderia a me buscar e a retomar o que havia deixado para trás. Pegar o abebé (espelho) da minha mãe Oxum e entender que assim como ela, é necessário ser em si antes de ser e estar no outro. Para esta fase da primeira chuva, selecionei a música Pedido a Osun, de Pâmela Amaro.
Na segunda chuva: a gente precisa aprender a dançar na chuva enquanto planeja o que fazer quando ela cessar. A calmaria depois da chuva não quer dizer que o rio não vai continuar a subir, pelo contrário, outros rios desaguam neste leito e há de se aprender a receber estas novas águas. Eu tive que sentar à margem e esperar. Precisei dormir 40 dias em um colchão no chão, precisei de ajuda, precisei de cuidado, precisei assumir que sozinha, sem ajuda emocional e fraterna, não voltaria a correr sem dor. Precisei (re)encontrar a minha espiritualidade e entender que os tempos cuidam de tudo, que o tempo é amor. Para este momento, selecionei a música Quem sabe isso quer dizer amor, cantada por Milton Nascimento.
Após a chuva, a reconstrução: As águas baixam, e a gente olha pra destruição, pro leito machucado, pras coisas fora de lugar e assim, olhando para o que ficou, criamos as estratégias de retomada. Esse processo é infinito, ele possui marcadores que são datas que te fazem lembrar onde tu estavas em cada fase, mas de fato não tem fim. Nem no fim há um fim. A vida é começo, meio e começo como nos disse Nego Bispo, que voltou a ser semente neste mês de dezembro.
Consegui fazer coisas, ocupar novos espaços e vejam só, até escrever para esta coluna, logo eu que tanto fugi das palavras ditas e escritas, agora as uso para me comunicar explicitamente sobre quem sou e sobre o que acredito, construindo assim, novas possibilidades para a minha existência que é parte do existir coletivo do meu povo.
Quero confluir (olha Nego Bispo novamente!) Continuar o fluir do rio mesmo com e apesar das demais convergências e fluências que não permitem que paremos. Desde 2019 eu só agradeço. Que ano hein, 2023?! Venha, 2024, na abertura de portas e caminhos de nosso pai Bará. Me despeço com essa lindeza na voz de Nina Fola e as Ialodês. Nos encontraremos em breve!
Fernanda Oliveira é pedagoga pela UFRGS, mãe, professora, fundadora do Projeto Social Oorun que atua na afrobetização de crianças negras, cofundadora do coletivo de Profes Pretas, gestora de Filosofia e Cultura na Odabá