Porto Alegre acaba de publicar um novo relatório sobre suas áreas de risco com apoio do Serviço Geológico do Brasil (CPRM). Nos últimos 10 anos, os setores de risco (como são chamados na planilha disponibilizada) passaram de 110 para 142, um aumento muito importante (em 2023, há 29% mais áreas de risco). Mais assustador, no entanto, é o número de famílias nestas condições, que aumentou em 90% (passando de 44.436 em 2013 para 84.460 atualmente). Um salto dessa escala não é acidente do destino, nem mesmo pode ser culpa dos moradores que, temerários dos riscos, aceitam se colocar nessa situação. Há algo de estranho no ar do desenvolvimento urbano de Porto Alegre e acredito que o professor Nabil Bonduki acerta em cheio ao apontar causas semelhantes por trás dos desastres ocorridos no litoral de São Paulo recentemente: a concentração das terras urbanas na mão de poucos.
De um lado desse problema, temos famílias que ganham quantias modestas, muitas vezes na informalidade ou em formas de trabalho precário, que não conseguem financiar ou comprar um terreno ou apartamento. Essas famílias, mesmo com enorme esforço pessoal, esbarram na comprovação de renda, nos cadastros positivos no SERASA e na gangorra econômica que é a economia brasileira ao tentar financiar um bem durante 30 anos ou mais de suas vidas. Exemplo disso é a retomada em massa de imóveis da Caixa financiados pelo Minha Casa Minha Vida por inadimplência. Se soma a esse problema a ausência dos bancos privados do financiamento de moradias de baixo custo. Enquanto na absoluta maioria dos países é o setor privado que faz isso, no Brasil, via de regra, quando não há Caixa Econômica Federal operando financiamento com recursos públicos, não existe financiamento.
Do outro lado, temos um mercado de terras extremamente concentrador, que apresenta raízes históricas na colonização. Se no início da ocupação portuguesa toda a colônia foi dada a apenas 14 capitães-donatários, a manutenção dos privilégios da escravatura até 1890, a industrialização fragmentada do país no século XX e sua introdução no mundo globalizado do XXI fizeram pouco para distribuir riquezas e posses entre a população. O legado é um país em que poucos são donos da grande parcela das terras e acabam por controlar o mercado imobiliário. As cidades que nascem dessa desigualdade são recortadas pela segregação: ricos em seus enclaves, pobres onde conseguem e a classe média como um para-choque tentando se segurar. Até os anos 1980, os mais ricos moravam nos centros, próximos das instituições de governo e das áreas mais nobres do comércio. Em Porto Alegre, temos a rua Duque de Caxias e o bairro Moinhos de Vento como exemplares. De lá pra cá, novas formas de elitização surgiram: condomínios fechados como o Terraville e bairros planejados como Jardim Europa.
Reforma Urbana
Mas o que os desastres e as áreas de risco têm a ver com isso? Esses movimentos imobiliários dos mais ricos influenciam o preço da terra. O mercado quer atendê-los e ondas de valorização percorrem as cidades seguindo seus movimentos – o que o economista Pedro Abramo chamou de “convenção urbana”. Frente essas dinâmicas, a concentração histórica e sem uma redistribuição de terras na chamada “reforma urbana”, grande parte da população fica à mercê dos valores praticados no mercado. Para muita gente, isso significa não ter acesso a terra ou casa pelo mercado – o preço é simplesmente muito alto para sua renda sem o apoio de financiamentos de baixo custo. Cada família se vira como pode: alguns subdividem o terreno conseguido pelos pais ou avós fazendo puxadinhos, outros se aventuram nas periferias da região metropolitana, buscando terra barata mesmo que fiquem longe de tudo. Buscando alternativas, outros aceitam o risco de morar em áreas ambientalmente frágeis que quase ninguém mais quer: as beiras de rios e as encostas de morros.
Em um artigo científico recente, eu argumento que essa é uma escolha entre dois tipos de risco: arriscar ficar sem acesso a empregos e serviços públicos (veja o mapa do IPEA com o acesso a empregos e serviços de saúde em São Paulo e Porto Alegre), ou arriscar a enfrentar os impactos de enxurradas ou deslizamentos de terra em áreas de risco. Muitas vezes os estragos não são sentidos em muitas décadas e é muito difícil medir a probabilidade de um evento climático. Assim, a escolha pode não parecer tão ruim no curto prazo e a situação se agrava ao passar dos anos. Na Vila Pinto (Bairro Bom Jesus), em Porto Alegre, onde trabalhei nos anos 2000, ouvi moradores contar como ocuparam as beiras de córregos por último, depois que a subdivisão dos lotes das mães e avós já não comportava as novas gerações dos anos 1990 em diante.
Expansão do risco
No entanto, as mudanças climáticas estão fazendo com que tempestades que eram muito raras se tornem mais cotidianas – a mudança do chamado perfil de risco. Isso acontece no mesmo tempo em que nossas cidades vivem os efeitos uma grave crise econômica e meia década de abandono de políticas habitacionais. O resultado é o quadro mostrado na recente pesquisa do CPRM: expansão do número de áreas de risco e explosão da população vivendo em condições graves – em que arriscam suas próprias vidas quando há um desastre. É uma tragédia anunciada, já que assistimos a situações semelhantes levarem a grandes desastres na região serrana no Rio em 2011 e 2022, em Pernambuco, Sergipe e outros estados do Nordeste ano passado e no litoral paulista neste ano.
Na tentativa de remediar os impactos mais severos, é frequente que se promova o racismo ambiental e a injustiça climática na forma de remoções forçadas e súbitas. Foi essa a solução emergencial apontada pela Procuradoria Geral do Estado de São Paulo e pela Prefeitura de São Sebastião para os desastres no litoral paulista, como mostra um artigo de fevereiro do LabCidade (USP). No entanto, o racismo se apresenta quando essas medidas escondem contradições no tratamento das áreas ambientalmente frágeis. Condomínios de alta renda (normalmente com famílias brancas), quando localizados em encostas ou na beira do mar ou rios, não são considerados de risco. Por vezes conseguem inclusive exceções nas normas urbanas e tornam-se regulares, apesar da fragilidade ambiental. Assentamentos de baixa renda, mais pardos e negros, por outro lado, são frequentemente marcados para remoção.
Essa mostra de critérios diferentes de acordo com os privilégios envolvidos mostra a ambiguidade que o Estado no Brasil lida com os riscos climáticos – e é justamente essa ambivalência de considerar “com quem se está falando” que demonstra quão natural é o racismo ambiental no Brasil. Afinal, não resta muita dúvida de que renda no Brasil está altamente relacionada com etnia e raça. Em tempos de mudança climática, não é surpreendente que tanto baixa renda quanto etnias não-brancas e categorias socioprofissionais menos intelectuais (isto é, produção ou serviços sem educação secundária ou universitária) coincidam com maiores riscos ambientais e mesmo de COVID-19.
Não dá mais para ignorar
Um mecanismo perverso se apresenta: até ocorrer um desastre, a sociedade ignora os assentamentos informais em áreas frágeis. Seus habitantes têm que erguer por conta própria suas moradias e mesmo implantar soluções improvisadas para obter serviços públicos como água e esgoto. Quando ocorre um desastre, as áreas vulneráveis são vistas como problemas subitamente urgentes, que necessitam de intervenção imediata – ganham o foco das ações da sociedade, mas perdem o direito de decidir seu destino. É raro que sejam consultados os habitantes dessas áreas, garantindo mínima autonomia. Também é raro que sejam garantidas condições de moradia dignas e que permitam o desenvolvimento futuro dessas famílias nos locais para onde são relocadas. O mais comum é que os pobres sejam removidos para locais periféricos, onde tem que recomeçar um duro processo de adaptação.
Porto Alegre viu isso ocorrer tão cedo quanto na remoção das famílias da Ilhota em 1965 para fundar o bairro da Restinga, mais de 20 km distante dos empregos que então eram concentrados no Centro Histórico. Esse argumento não é novo – na verdade é tão comum que foi chamado de “ciclos de expropriação” pela pesquisadora gaúcha Karen Paiva Henrique (hoje professora na Holanda) em um dos mais importantes periódicos de geografia.
O relatório do CPRM que identifica as áreas de risco também sinaliza a necessidade de remoções. Essa recomendação é preocupante visto que não havia profissionais das ciências sociais (ou áreas afins) na equipe responsável pelo relatório que pudessem temperar as diretrizes com a visão dos afetados pelas remoções. Sem um diálogo entre as imposições do ambiente e a realidade social e na sanha de realizar adaptações às mudanças climáticas, podemos promover constantes injustiças sociais e ambientais. Ao reforçar os ciclos de expropriação, reforçamos também o racismo estrutural, que joga os pobres e negros para longe dos centros de poder, para fora do convívio com outras classes sociais, com políticos e formadores de opinião. Escondemos, assim, as vulnerabilidades sociais e ambientais e reforçamos essa nova forma de exclusão que é a injustiça climática.
Soluções passam pela participação
Temos soluções para este dilema: promover o diálogo e a participação cidadã na tomada de decisão, especialmente quando houver conflitos, integrar o planejamento urbano e ambiental e encarar a dura tarefa de combater a desigualdade. São essas as diretrizes apontadas pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, os ODS da ONU. Eles apresentam dezenas de medidas que países e cidades podem implementar para garantir um futuro para o planeta. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre a Mudança do Clima (o IPCC) publicados há algumas semanas não deixa dúvida que o desenvolvimento sustentável não é mais uma questão de opção, mas o mínimo a ser feito para evitar danos extensos e profundos.
Nesse contexto de agravamento das crises climáticas, eu proponho que pensemos nossas cidades como projetos coletivos (como já o fez o pesquisador Marcelo Lopes de Souza), em que a integração social, econômica e territorial deve ser promovida de forma concertada e dialogada.
Para começar, proponho uma agenda de ação cidadã:
a) integrar os afetados pelas decisões no seu processo decisório;
b) integrar pesquisadores das ciências sociais nos estudos ambientais;
c) conectar as decisões do desenvolvimento urbano à ampliação dos direitos coletivos, especialmente para os grupos vulneráveis e
d) compreender que o desenvolvimento sustentável é o mínimo a fazer para termos um futuro. Isso pode parecer ingênuo, mas não acredito que seja.
Acredito que seja o essencial para termos uma chance de futuro; que seja o mínimo para que não tenhamos crises sociais profundas devido aos danos que sofreremos. Acredito ainda esse diálogo possa prover novas soluções que hoje não imaginamos e que, mesmo que feito aos pedaços, nos traga ganhos coletivos em meio aos desafios que enfrentamos.
Alexandre Pereira Santos é planejador urbano e doutorando em geografia na Universidade de Hamburgo. É membro do POA Inquieta desde 2019 e articula o grupo Arquitetura e Urbanismo.
Foto da Capa: Manu Dias/GOVBA/Divulgação