Lá pelo distante ano de 1998, por aí, eu e um amigo ficamos um bom tempo discutindo, algo perplexos, um texto que havíamos lido em que um crítico de música que, a respeito de algum tópico não relacionado (talvez fosse sobre o Prodigy ou o Chemical Brothers, me lembro de que era sobre música eletrônica) citava a certa altura o rock como um gênero com um “inevitável apelo fascista”. Ao comentar a matéria, eu e meu amigo, roqueiros ambos e nos sentindo ofendidos de um modo indefinível, tentávamos entender de onde diabos o cara (um crítico de alguma atuação na imprensa no período) tinha tirado aquilo. Meu amigo acabou desmerecendo a afirmação dizendo que o cara só dizia isso “porque gostava dessas boiolagens aí de eletrônico”, meio que dando razão parcial ao argumento do crítico com uma tirada que vejo hoje como de constrangedora ironia em sua homofobia escrota.
O fato é que um quarto de século depois daquela tarde eu ainda me pego pensando naquele texto, não tanto por concordar ou discordar, mas por perceber que ele tocou num ponto que se torna cada vez mais relevante ao se discutir um gênero cada vez mais irrelevante. Estaria de algum modo o rock mais vulnerável à apropriação por grupos conservadores de colorações variadas devido a algo inexprimível em sua própria natureza?
Eletrônico x rock
Para começo de conversa, tendo passado 25 anos daquela tarde em que li e discuti esse texto, entendo hoje o que o crítico quis dizer por ter mais noção do contexto. Naquele período, a música eletrônica que se popularizou e ganhou o cenário, no lugar do synthpop que dominara a década anterior, vinha como parte de um pacote. Muitos dos grupos e DJs que fizeram sucesso a partir daquela década faziam um som que ainda bebia em raízes libertárias (no sentido original da palavra, não nesse lamentável sequestrado hoje pelos anarconeoliberais): festas em invasões, raves hedonistas, experiências com drogas, fluidez sexual. (elementos que estavam na mente de Hakim Bey quando ele cunhou seu conceito de “Zona Autônoma Temporária”, muito popular entre a esquerda radical daqueles tempos). Assim, essa cena deu voz a um número multifacetado de tribos e tendências fora do padrão normativo.
Ao mesmo tempo, naquele mesmo período dos anos 1990, o próprio grunge já representava no universo do rock uma reação de espírito punk ao que havia se tornado uma indústria milionária calcada em hiperprodução e em shows realizados em grandes arenas em que uma massa mesmerizada cantava com o punho pra cima em sintonia com um ou mais líderes de massas no palco. Não chega a ser bem o Ur-Fascismo do Umberto Eco, mas está aí o “apelo” que o crítico identificava, e nesse sentido até concordo com ele, mas acho que a oposição entre o eletrônico libertário e o rock fascista meio que se diluiu no fato de que a partir dos anos 2000 também o eletrônico se tornou um gênero de DJs em arenas e presente em festivais que são templos do consumo naturalizado.
Ícones de pés de barro
O fato é que hoje, em pleno 2023, após o período de alguma turbulência que vivemos nos últimos anos, parece algo inútil discutir se algum elemento do rock pode ser apropriado pelo fascismo, uma vez que vimos isso com todas as tintas possíveis nos últimos anos durante a gradual radicalização da sociedade e a ascensão da extrema direita. Boa parte dos ícones do rock, presente e passado, hoje estão dando algumas declarações que fazem pensar o que aconteceu com aquela galera enquanto estavam fora das vistas do público coçando o saco em alguma mansão.
Não falo aqui de bandas assumidamente neonazistas ou algo que o valha – o que também existe, e é também alarmante, mas é um fenômeno algo nichado. O que comento é sobre como heróis da rebeldia juvenil envelheceram para alinharem-se a algumas posições que passam do controverso e beiram o criminoso muitas vezes. No auge da pandemia, quando ainda não havia vacinas e a diminuição das situações de contato era uma das poucas alternativas para tentar refrear a disseminação de um vírus novo e de consequências imprevisíveis, Eric Clapton, o fucking “guitar god” original, não apenas se posicionou de modo insistente contra as políticas de distanciamento social como escreveu música a respeito. Também foi outra celebridade recente a aderir ao perigoso movimento antivax.
Outro britânico que fez história no estilo, Morrissey, outrora um campeão da cena good vibes por seu veganismo radical assumido, foi preocupantemente deslizando para o lado sombrio da força e vem se dedicando com afinco a marcar todas as casas disponíveis no bingo da infâmia. Ele já defendeu publicamente os abusadores em série Kevin Spacey e Harvey Weinstein. Ele já disse, sem saber ecoando a tirada preconceituosa daquele meu amigo dos anos 90, que música eletrônica é coisa de debiloide. Ele defende que a “identidade nacional” britânica está em perigo, e boa parte disso se deve à imigração. E ele já até se provou que, quando quer, sabe ser tão burro quanto seu tuiteiro ancap padrão ao dizer que o nazismo era de esquerda.
Muitos argumentam que o problema de base aqui é o discurso de contestação a qualquer preço tão cara ao rock, e o quanto esse tipo de comportamento mostra, a seu modo, os limites desse tipo de abordagem. Enquanto você é “contra o sistema” convencendo seus fãs a comprar camisetas vagabundas e a milésima versão do seu mesmo disco lançado 30 anos atrás é uma coisa. Outra bem diferente é quando você é usa o peso desproporcional de sua fama para vender a ideia de que imigrantes não são bem-vindos e de que ninguém deveria tomar vacina.
Os “do contra” a favor
Aliás, há uma fragilidade essencial no argumento de que parte dessa onda reacionária do rock é, digamos, a eterna vocação “do contra” do gênero levada ao extremo. Algo que ficou bastante claro nos exemplos nacionais de um bando de roqueiros reaças abraçados ao governo genocida que tivemos durante a pandemia. De Roger do Ultraje a Rigor a Digão dos Raimundos, passando também pelo doidão de plantão dos anos 1980, Lobão, que escrevia canções à “vida bandida” quando era ele quem ia preso com drogas, mas que depois não viu constrangimento em apoiar aquele cara que se candidatou a presidente em 2018 e em subir em trio elétrico pedindo ditadura militar.
Um dos casos mais recentes no cenário rock do país ocorreu em janeiro, quando uma das bandas mais importantes do som pesado nacional, a Shaman, projeto fundado por Andre Matos, Luis Mariutti e Ricardo Confessori, à época recém saídos da Angra, uma das bandas mais bem sucedidas internacionalmente do heavy metal feito no Brasil. Após os ataques golpistas ao Congresso Nacional por apoiadores inconformados do ex-presidente agora inelegível, o baterista Ricardo Confessori usou as redes sociais para manifestar apoio aos golpistas e entrou em um vórtice de discussões e xingamentos com fãs que o interpelaram por seus posicionamentos. Em resposta, Luís Mariutti, parceiro musical de Confessori por três décadas, anunciou que estava deixando a banda. Pouco depois, seu irmão Hugo Mariutti, guitarrista que administrava a parte burocrática da banda, anunciou o fim do grupo.
Não são casos anedóticos isolados. Diacho, não chega sequer a ser um tipo de postura restrito aos artistas, mas parece ter havido mesmo um emburrecimento geral do público, ao ponto de o sujeito ir assistir a um show de Roger Waters e se indignar com suas manifestações políticas. Sim, um cara que escreveu The Wall e The Final Cut, o brasileiro médio vai ver achando que “não tem política”. De onde saiu essa gente? A maconha da lata dos anos 1980 corroeu mais neurônios do que devia?
Foram bastante veementes as manifestações de apoio ao presidente inelegível vindas de representantes do rock nacional, ao ponto de ter se formado uma associação muito forte entre o bozismo e o rock, em muito semelhante àquela que existe entre o mesmo movimento e o sertanejo. A questão é que, por sua identificação com o agronegócio e pelas suas raízes que, remontadas, vão parar lá atrás em um Brasil meio arcaico e naturalmente conservador, o sertanejo não vê problema algum nessa identificação. O rock morre um pouco a cada dia com essa associação, que acaba revertendo de imediato tudo o que se costumava associar ao gênero. Como assim ser fã de um estilo “libertário e contestador” e ser um babaca que aplaude truculência policial? Como assim curtir o som de uma galera cabeluda que em seu tempo desafiava abertamente a noção de masculinidade e ser ainda um machista homofóbico parecendo ter saído agora de um comercial da Budweiser com sérias restrições orçamentárias?
Complexo de culpa
Talvez esteja aí um outro ponto a ser considerado: a eterna propensão do rock a um difuso “complexo de culpa”. Na origem, o rock tem inegáveis raízes proletárias. Fruto direto do blues (alguns diriam “uma apropriação e um branqueamento descarado do blues”), caiu nas graças da juventude trabalhadora sem perspectivas sucessivamente ao longo das décadas. Do rockabilly americano dos 1950 à explosão do rock inglês dos 60. Incluindo aí o punk americano dos anos 60 e sua versão mais radical inglesa nos anos 1970. E de algum modo está aí também a gênese de um tropo que já faz parte da própria mitologia do rock: o do artista que, alçado à fama e à fortuna justamente por ter feito sucesso com esse tipo de público, se sente torturado pelo seu sucesso e pelo modo como a riqueza amealhada com sua obra parece agora posicioná-lo em um lugar “menos autêntico”.
Trocando em miúdos, o rock padece do eterno medo de “se vender”, algo que parece assombrá-lo com mais intensidade, uma vez que o pop não tem esse tipo de conflito por ser ele próprio comercial por natureza e muito do rap e do hip-hop já veio a público com uma concepção menos ingênua do mundo do que a do pobre roqueiro branquinho. Dinheiro, numa sociedade capitalista, é poder, e por isso garantir os direitos sobre a própria obra e tentar ganhar com seu trabalho já fazia parte do rap tanto quanto seu papel na identidade cultural. Aliás, a animosidade crescente do roqueiro brasileiro ao funk, por exemplo, me parece um atestado de morte cerebral e criativa. A música que já foi contestadora e rebelde, obscena e imprópria, identificada com o protesto “contra tudo isso que tá aí” agora não gosta do que vê quando pretos, pretas e pobres começam a ter espaço com um som que fala diretamente de suas questões, sem passar pela validação do “protesto oficial” da juventude branca.
São várias as hipóteses para essa tendência de guinada à direita entre artistas e público consumidor do rock. Algumas delas levantam a possibilidade de que haja no rock como estilo um elemento indissociável de raiva masculina que possa ser responsável por essa curva à destra. Está até lá nos versos da canção Cinema Americano, cantada por Taís Gulin, quando diz que gosta mais dos carinhas que preferem ouvir Caetano e Manu Chao em vez de Slayer (definitivamente o que não é o meu caso): “Não que Slayer não seja legal / e visceral / A expressão do desespero / Do macho americano é normal”. Ainda assim, me parece uma hipótese insuficiente, uma vez que o machismo é geral na sociedade e permeia todos os gêneros, e tem muito esquerdomacho ouvindo Caetano e Manu Chao sem culpa, e ainda assim essa identificação de conservadorismo inescapável não é generalizada.
Classe média
Há uma outra hipótese, já levantada por outros em outros textos, de que, ao menos aqui, parte da explicação vem da própria ressonância inicial do estilo. Não apenas no Brasil, mas na América Latina, o rock ressoou com mais força não nas comunidades proletárias que o adotaram pelo mundo, e sim junto a uma juventude classe média e às vezes muito bem-posicionada na vida: uma turma que tinha dinheiro pra comprar disco e revista importada e fazer um Yazigi qualquer pra ir conhecer a Europa antes dos 18 anos. Ora bolas, o punk nacional que emerge a partir dos anos 1980, em que pese a qualidade do som produzido por seus músicos, é um movimento na contramão do que o punk representa. Arte marginal que encantou filhos de diplomatas, militares de alta patente e gerentes do Banco do Brasil. Estaria no envelhecimento dessa geração com um recorte de classe bastante específico a explicação para esse fenômeno.
Mas claro, essa não é uma explicação satisfatória em escala global, dado que não explica muito a mesma guinada em países como Inglaterra e Estados Unidos – não esquecer que até mesmo um dos ícones máximos do punk, Johnny Rotten (foto da capa), um filho de imigrantes pobres na Inglaterra em recessão dos anos 1970, envelheceu a ponto de se tornar um luminar da extrema direita britânica.
Chego ao fim deste texto sem chegar a uma conclusão. Não me parece haver nada eminentemente fascista no rock como gênero, mas tem ficado meio difícil desculpar a existência desse tipo de figura lamentável que é o “roqueiro velho”, reclamando do som contemporâneo, do estado das coisas, da cultura “woke” etc. Ex-líder da banda Cascadura, Fábio Cascadura deu no ano passado uma entrevista para a Carta Capital na qual argumenta, com a autoridade acadêmica de quem se doutorou em história pesquisando o assunto, que o rock não tem uma vocação inerentemente conservadora. Não que ele dê muitos elementos para que eu acredite, mas tenho a esperança de que ele esteja certo…