Ao aprofundarmos os estudos sobre a contribuição dos negros na construção da sociedade brasileira, nos deparamos com um legado incrível, muito consistente. Esta afirmação pode causar surpresa a alguns, pois via de regra reproduzimos o senso comum de que os negros contribuíram basicamente para a cultura, culinária e religiosidade. Porém, ao seguir em frente, veremos que a contribuição foi também intelectual, de organização social e modos de produção avançados em relação aos países colonizadores.
Faz sentido que não saibamos a real história, pois na construção do pensamento eurocentrado e baseado na individualidade, as atribuições intelectuais dos negros em diáspora não são interessantes para a manutenção do processo de dominação.
Na literatura, fala-se muito em trabalho braçal, raça forte que suporta tudo. Assim, foi-nos retirada a humanidade que de certa forma validou a forma de tratamento dispensada a toda uma população no período escravocrata.
Ao apurar a crítica sobre o tema, me deparei com questões de saúde pouco abordadas quando se fala em contexto histórico e prognóstico em decorrência das ações destinadas aos negros. Ora, se a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1946, definiu a saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas ausência de doença ou enfermidade, como essas pessoas sobreviveram? Viveram, sobreviveram e deixaram um imenso legado.
Desde a diáspora, a população negra desenvolveu técnicas de sobrevivência que englobam saúde física e mental. Penso que esta é, de fato, uma herança. A forma com que os africanos e seus descendentes pensaram a sobrevivência possibilitou a continuidade de seus valores, cultura e estética. Os pioneiros foram aqueles que sobreviveram e, nós, somos a continuidade.
Apesar do orgulho em saber de toda a luta, não podemos romantizar o enfrentamento, tempos de muita dor e sofrimento na sua forma mais perversa. Confesso que, ao falar de dor, resistência e enfrentamento, me perco no tempo do texto porque o passado e o presente se entrelaçam e se tornam muito parecidos.
Enfrentamos, além de questões físicas, dores emocionais, a negação do sentir, o auto-ódio, o abuso físico e de substâncias, por exemplo, questões que impactam diretamente no comportamento de gerações, um problema contemporâneo. Diante disso, um caminho sintomático muito possível para a população negra é o desenvolvimento de doenças relacionadas à ansiedade e depressão, principalmente. Se nos negam o saber histórico, o que dizer das emoções?
Quando se fala em saúde e qualidade de vida da população negra, os aspectos emocionais em decorrência do processo devem ser considerados, bem como a herança que o modo de vida trouxe para as gerações futuras. Continuamos fazendo o impossível, estamos vivos, mas em que condições de saúde?
Ao pensarmos sobre nossa herança física e mental, podemos entender se as políticas públicas abarcam nossas necessidades, pensando em toda a construção histórica a que fomos submetidos. Falar de saúde na sua integralidade traz uma necessidade de saber histórico e precisamos nos apropriar da nossa história para que o direito à saúde seja melhor oferecido a todos nós e, assim, honrar os que vieram antes e nos deram a possibilidade de viver com maior qualidade de vida e entregar melhores condições aos que vem depois de nós, mantendo a circularidade dos saberes segundo a filosofia africana.
Sim, podemos aplicar modelos de outros lugares que não os vindos da Europa. Saberes baseados na coletividade, como os vindos de África, nos dão uma perspectiva de cura, do olhar coletivo, inovação e amor-próprio.
Jennifer Cereja é mãe, ativista, psicóloga e palestrante. Trabalha em consultório, apaixonada pela clínica e os atravessamentos que a prática proporciona. As escrevivências, como diz Conceição Evaristo, tem o olhar afrocentrado sempre considerando o indivíduo como protagonista de sua história.
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