Google demitiu 12 mil pessoas. A Meta do Facebook, 11 mil funcionários. Amazon e Microsoft desligaram 10 mil cada uma. Das cinco empresas de tecnologia mais rentáveis do mundo, as BigFive, somente a Apple não fez demissões em massa – até hoje. O monitoramento destes movimentos é feito em um site de dados abertos chamado layoffs.fyi, no inglês layoffs significa demissões e a sigla FYI (for you information) é traduzida como “para a sua informação”. Os motivos para a redução de cargos de trabalho são o aumento das taxas de juros, a recessão, o estouro da bolha tecnológica da pandemia, entre outras explicações de especialistas entrevistados na cobertura de imprensa. Mas a pergunta não respondida é por que a Apple não demitiu também?
Desculpa decepcionar o leitor, mas eu também não tenho a resposta completa. Porém, me proponho pensar em palavras compartilhadas. Como pesquisadora aprendi que toda investigação parte de hipóteses consistentes e é isso que posso oferecer. Portanto, minha hipótese é que haja, pelo menos, três motivos: código fechado, controle e desejo.
Ainda quando ministrava uma disciplina que se chamava jornalismo online, eu adotei como leitura obrigatória para a resenha dos alunos o livro “Steve Jobs por Walter Isaacson”, a autobiografia encomendada por ele mesmo traz detalhes da personalidade intrigante que distorcia a realidade até que a ideia dele se tornasse a própria realidade. Foi assim que ele criou a Apple e se transformou num encantador de consumidores. O livro de 600 páginas é resultado de 40 entrevistas realizadas e vale cada parágrafo da vida do gênio da tecnologia, dos negócios e, principalmente, do design de experiência.
Se você não leu, vou dar um spoiler: trabalhar na Apple e lidar com Steve Jobs não era para os fracos. Por mais que a empresa de tecnologia estivesse no Vale do Silício e oferecesse os ambientes descolados e salas de descompressão para funcionários e visitas, o humor do chefe ditava o clima corporativo. Ao ponto de ele ter sido “demitido” da própria empresa – e depois readmitido – como conta no livro. Jobs era obsessivo no objetivo de inovar e criar desejo e para isto confiava mais nas ideias do que no mercado.
A verdade é que Jobs sabia jogar o jogo do mercado e conseguiu valorizar a empresa de capital aberto, mas nunca se rendeu a ele. A pressão pela abertura dos códigos de programação para desenvolvedores, uma prática da cultura hacker institucionalizada pelas BigTechs, nunca afetou a Apple. Havia uma convicção de que os códigos fechados eram o principal ativo da empresa e que compartilhar, nem que fosse parte dele, seria o primeiro passo para perder o controle sobre o produto. A obsessão de Jobs era o código perfeito, o controle de todo o processo de experiência do usuário com o produto e o design intuitivo.
O grande segredo da Apple foi despertar o desejo no consumidor. Não havia ali uma ambição de ocupar o mercado popular de massa e este direcionamento estratégico nunca foi alterado. Os usuários de MAC – que chegaram a ser chamados de macmaníacos – pagam mais caro pelo produto com a promessa de ter a melhor experiência de uso. Os consumidores de Apple estão sempre à espera da próxima inovação, da pequena grande revolução, do produto que eles ainda nem conhecem, mas sabem que não poderão viver sem. Jobs era fã de Henry Ford que certa vez teria dito “Se eu perguntasse aos consumidores o que queriam eles teriam dito: um cavalo mais rápido”. É nesta linha de pensamento que Jobs afirmava que “a nossa tarefa é descobrir o que os consumidores vão querer antes de quererem…por isto que nunca recorro a pesquisa de mercado” (p. 583).
É neste ponto da entrevista, ao final do livro, que Jobs fortalece a minha hipótese. Para Jobs o código fechado e a não integração com softwares e hardware terceiros tem um motivo: a paixão por fabricar grande produtos. “Se você permitir que os seus produtos sejam acessíveis a outros sistemas, terá de abandonar o seu ideal”. Jobs afirma que a Microsoft a certo ponto perdeu relevância porque “não tem a arte e as humanidades no seu DNA… Bill Gates era um cara de comércio, não de produto”. A comparação com a Big Tech concorrente é uma crítica à estratégia de popularização massiva que, para Jobs, visava mais ganhar dinheiro do que oferecer um bom produto. “A empresa faz um grande serviço, inova e torna-se um monopólio, ou quase isso, e depois a qualidade dos produtos torna-se menos importante”. Jobs se considerava um cara de produto e acreditava que o maior erro das empresas de tecnologia era dar mais valor às vendas do que aos engenheiros e designers de produto.
Enquanto a Google, Amazon, Microsoft e Meta demitem para manter o lucro dos acionistas de mercado, mesmo em um período de baixa nas vendas de produtos, a Apple silencia. A seguir o legado deixado pelo fundador Steve Jobs, a equipe de produto deve estar focada em criar um novo produto ou inovar os existentes. Se o lucro não é o mais importante para a Apple e sim consequência do produto de qualidade e quem tem as “big ideas” que se tornaram produtos únicos são as pessoas, não faz sentido dispensar a humanidade, como ensinou Jobs. Não à toa Jobs preparou Tim Cook para CEO. A decisão de Cook, ainda no ano passado, diante da queda dos resultados, foi preservar os técnicos, designers, engenheiros e cortar o próprio salário e alguns contratos terceirizados. Neste ano, ele receberá 50% a menos todos os meses, o que já é um dinheirão (U$49mi/ano).
Ao manter as pessoas na base e cortar no topo, Cook mantém o código fechado e o controle do produto como o segredo para a fábrica de desejos chamada Apple. Talvez o leitor tenha se perguntado: por que esta era uma leitura obrigatória em jornalismo online? Bem, porque na discussão entre forma e conteúdo não há mais e menos importante, há o desafio de proporcionar a melhor experiência possível para os usuários no consumo diário de notícias nos dispositivos móveis digitais. E esta resposta nem a Apple conseguiu desenvolver ainda, quem sabe meus ex-alunos responderão um dia.