O primeiro-ministro japonês Shinzo Abe foi assassinado no último dia 8, em um comício na cidade de Nara, perto de Quioto. Com uma arma de fabricação caseira, Tetsuya Yamagami, de 40 anos, é acusado do ataque. Shinzo Abe tinha então 67 anos e foi primeiro-ministro do Japão entre 2006 e 2007 e entre 2012 e 2020, o líder japonês com maior longevidade no cargo. O assassinato precedeu as eleições para o Senado japonês, marcadas para domingo e Abe discursava em apoio a Kei Sato, um membro da câmara alta do Parlamento que concorre à reeleição como representante da cidade de Nara.
É difícil entender como ocorreu o assassinato num país que passou mais de dois milênios e meio de história desenvolvendo nas ilhas do arquipélago japonês uma pujante sociedade cujo passado é rico em lições de como a cultura, identidade nacional e o valor dado ao trabalho e a vida pacífica são guias da existência. Como entender a luta dos japoneses pela preservação dos valores tradicionais frente ao capitalismo neoliberal que baseia seu desenvolvimento na desagregação das culturas nacionais, na luta social e política e na exploração e desvalorização do trabalho por grandes conglomerados – inclusive japoneses? Esse conflito pode estar também no cerne do assassinato do petista Marcelo Arruda pelo bolsonarista Jorge José da Rocha Guaranho?
Uma forma de buscar compreender os acontecimentos deste final de semana é dirigir um olhar para o passado japonês. É o que pode ser visto em Japan 1900 (Editora Taschen), obra que apresenta a visão das origens tradicionais do Japão moderno. Organizado por Sebastian Dobson, pesquisador independente dos primórdios da história da fotografia japonesa e Sabine Arqué, documentarista e autora de inúmeras obras de história do turismo e da fotografia, a obra é um calhamaço de cinco quilos e meio, onde mais de 700 ilustrações dividem suas 532 páginas de história do Japão do inicio do século XX.
A obra oferece o inédito tour pelo Japão através da fotografia. Dobson & Arqué introduzem a obra afirmando a idade do ouro das viagens aos Japão coincide com os quarenta e cinco anos do reinado do imperador Meiji, período que inicia em 1868 com o fim da ordem feudal e põe fim ao isolamento do país do resto do mundo que vinha há cerca de duzentos anos. É nesse período em que se consolida a arte da fotografia no Japão e que os hábitos ocidentais afetam as tradições orientais. É o período também em que ocorre a abertura do interior, que beneficiou os visitantes estrangeiros de uma grande liberdade de movimento durante a era Meiji (1868-1912).
Organizada em cinco capítulos correspondentes às regiões das ilhas, Dobson & Arqué tratam da cidade de Nara no capítulo segundo da obra “De Kobe a Osaka e Quioto”. Nara é citada por que a cidade é próxima a Quioto, para a qual os autores afirmam que, depois de conhecer Nagasaki, integra o caminho de viagem no Japão, que passava obrigatoriamente também por Kobe, um dos últimos portos abertos ao exterior pelo xogunato em 1868. Conhecida como a antiga cidade de Hyõdo, famosa por seu ar puro, possuía uma colônia de imponentes terraços de edifícios em estilo ocidental e ruas irregulares do bairro japonês famosas por suas construções em madeira. Os guias turísticos da época descreviam a proximidade da cidade com lugares bonitos como o Lago Biwa, a cidade de Nara e o Mar Interior, o que fazia com que os turistas ficassem um dia e viajassem por duas horas e meia de trem para Quioto, cidade com grande diversidade de monumentos, então denominada na era Meiji de Saikyõ, a Capital do Ocidente, em oposição a nova capital, Tóquio, a Capital do Oriente.
Nara é o centro da região pouco visitada de Yamato, ao sul de Quioto, berço da literatura japonesa e do budismo. Ela disputa espaço com outra cidade, Osaka, sede do governo do regente imperial Hideyoshi, que fora em 1585 uma cidadela importante para a defesa das aproximações à capital imperial de Quioto durante todo o período moderno, cidade que manteve também seu caráter mercantil e cuja rede de canais pitorescos levou os visitantes a chamarem-na de Veneza do Oriente. Desse período, se destaca Matsuo Bashõ (1644-1694), o poeta mais famoso do período Edo no Japão e considerado o maior mestre do haicai. Conhecido por seus ensaios de viagem “Registros de um esqueleto exposto às intempéries” (1684), escrito após sua viajem a Quioto e Nara.
A obra é repleta de imagens de época que mostram a força da tradição religiosa pode ser vista nos inúmeros tempos construídos no arquipélago. Uma cultura de paz, com monges e rituais de oração, um deles é o Templo Kiyomizu, erguido em uma estrutura de madeira na encosta acima da cachoeira de otowa, a varanda do templo oferece uma vista espetacular sobre Quioto. Conta a lenda que qualquer um que sobreviva ao salto de sua queda de 13 metros tem seu desejo atendido, o que era chamado de “saltar do palco em Kiyomizu”, saltar para o desconhecido.
Quando se olha a riqueza da história e da cultura japonesa reveladas por Japan 1900 não faz sentido o assassinato de Shinzon Abe. Na história resgatada por Dobson & Arché, o japonês do passado era ao mesmo tempo um povo inovador, preocupado com a sobrevivência e com a vida, capaz de observar a beleza do mundo ao redor, sensibilidade que se estendia as classes menos privilegiadas numa enorme vontade de inclusão na sociedade. É preciso, portanto, considerar as transformações do país após os anos 60. Nesse sentido, o capitalismo japonês acirrou-se, ignorando gastos militares, investindo no campo econômico naquilo que passou a ser conhecido como o “milagre japonês”.
Esse hiperdesenvolvimento entrou em conflito com seu passado, basta olhar Japan 1900, no confronto dos ideais de sua civilização frente ao poder de corrupção do capital, o que mostra que, inclusive as sociedades mais tradicionais e baseadas na defesa de notáveis valores humanos não são imunes ao vírus do capitalismo. Lutas sociais e econômicas podem levar a violência em sociedades com maior ou menor tradição cultural como a brasileira. Aqui, vamos aos poucos que, ao contrário do Japão, séculos de escravidão e exploração social fomentaram uma cultura de ódio que emerge na campanha eleitoral.
Em diferentes níveis, a intolerância recente no Japão e que no Brasil levou ao assassinato do petista Marcelo Arruda, nos fazem lembrar a afirmação do pesquisador Jacques Marcovitch, de que os japoneses souberam preservar suas tradições, isto é, souberam escolher ao longo dos séculos. Para os japoneses, fica a questão de se hoje os seus valores dignos de permanência são os mesmos do passado frente ao avanço do capital; para os brasileiros que se inspiram no exemplo japonês que Japan 1900 oferece, resta saber o que resta dos valores dignos de permanência herdados da Constituição de 1988 frente ao avanço do bolsonarismo. No Japão, a violência política pode ser a exceção numa sociedade que sempre pregou a paz; o que se teme é que no Brasil, uma sociedade que pouco pregou a paz em sua história, a violência política se torne a regra.
Serviço
JAPAN, 1900
Autores: Sebastian Dobson & Sabine Arqué
Editora Taschen
ISBN: 978-3836573566
Disponível em taschen.com e amazon.com.br
*Jorge Barcellos, Historiador e Doutor em Educação/UFRGS, autor de O êxtase neoliberal (Clube dos Autores, 2021)