O Dia da Conscientização do Autismo, no último domingo, levou autistas e seus familiares às ruas. Poucos dias antes, a realidade nos chocou com toda sua força, por um vídeo que viralizou nas redes sociais. Nele, a menina Vitória, de 11 anos, sofre bullying no pátio da escola onde estuda, no pequeno município de Natividade, interior do estado do Rio de Janeiro.
No vídeo, a menina é humilhada por suas colegas de escola e passa a chorar, momento em que as meninas passam a gritar “chora, neném”.
Eu vou aproveitar esse espaço para propor algumas reflexões para quem se incomodou com as imagens. Aliás, se você viu o vídeo e não sentiu repulsa, recomendo que pare de ler essa coluna agora mesmo. Não acredito na possibilidade de diálogo com alguém que passou sem nenhum sofrimento por aquilo.
Há poucos dias, recebi um vídeo de um sujeito na casa dos 50 anos dizendo que em sua época as coisas eram boas. Bullying não existia, todos se resolviam, afinal, eram só brincadeiras que não faziam mal a ninguém. Na maioria das vezes, pensa assim o sujeito que humilhava os outros ou assistia de longe sem fazer nada, mas que jamais sofreu a perseguição de seus colegas.
Porque ninguém que passou por agressões verbais ou físicas vai dizer que era uma bobagem. Provavelmente dirá que foi doloroso, ainda mais que não havia a quem recorrer, porque tais situações eram tidas como normais naqueles tempos. Já quem reclamava era visto como covarde, frouxo ou dedo-duro.
Um ditado que muitas ouvi e que traz a inegável sabedoria popular com ele é o “quem bate esquece, quem apanha não”. O bullying só é inocente quando é com os outros ou quando foi você quem fez. Daí, ele se acomoda nas lembranças como os bambas, congas e kichutes calçados na infância e lembrados com saudade pelo nostálgico senhor.
O bullying expressa uma ideia de hierarquização, em que uns valem mais do que outros, uns são vistos como iguais enquanto outros têm sua humanidade diminuída. É assim que pessoas “boas” fazem coisas “ruins”: quando acham que o outro é diferente e não merece sua bondade. E a menina Vitória encarna duas condições que fizeram com que outras meninas achassem que humilhá-la era um mero passatempo: negra e autista.
Sendo uma jovem negra com deficiência, ela está no grupo preferencial para ser vítima de violência, o que ocorre normalmente em casa, ou seja, a agressão parte de alguém que a conhece, exatamente como nesse caso.
As colegas ridicularizam o cabelo de Vitória. Quantas meninas negras já foram diminuídas, menosprezadas por seus cabelos? Como dizem os racistas: “cabelo ruim”, como se somente o cabelo liso fosse belo. Como diz a poeta Mel Duarte, em “Menina Melanina”: “quando a milésima pessoa aponta para o seu cabelo e ri”. Foi essa a humilhação imposta à Vitória, entre outras coisas, riram de seu cabelo e é uma agressão simbólica demais para se deixar de lado seu caráter racista. Stephanie Borges, em poema, diz que é preciso “acabar, se livrar, reduzir, eliminar” as características do cabelo negro. Que se passe para as pessoas é um pulo.
Quem acompanha grupos de autistas ou de familiares de autistas nas redes sociais observa que as agressões a autistas em escolas ocorrem cotidianamente. As investidas podem partir de funcionários, professores ou colegas. A escola, muitas vezes, colabora para desumanizar a diferença transformando quem é diferente em alvo de discriminação. A violência só se torna pública quando a vítima recorre à polícia ou à Justiça. Ou, como aconteceu na escola carioca, quando é filmada.
Eu já testemunhei isso em incontáveis ocasiões. Quando a agressão não é filmada, o mais comum é que o relato do autista seja contestado. “Ele não entendeu o que estava acontecendo”, “não pode ser, o ___________ é um menino ótimo, jamais faria isso”, são frases que fazem parte de um roteiro conhecido por autistas e seus pais. A criança ou adolescente sofre a violência por ser autista, é descredibilizada por ser autista e silenciada… por ser autista.
Outra forma de culpabilização recorrente é condenar a criança pela sua reação. Duvido que haja algum autista na face da Terra que não tenha suas atitudes rotuladas como “sem motivo”, incompreensíveis ou repentinas. Do bullying silencioso nada se fala, a condenação cai rapidamente sobre a vítima que grita por socorro.
O último e derradeiro obstáculo são os pais dos alunos que praticam o bullying. Tirando raras exceções, como quando as agressões foram filmadas, dificilmente os pais admitem que seus filhos fizeram algo assim.
Em um caso assim, os pais dos que perpetram o bullying costumam responsabilizar todos, a começar pela própria vítima. Ou então culpam os pais da criança perseguida, já que não ensinaram seu filho a se proteger ou não deveriam levar o filho àquele lugar (mesmo que esse lugar seja a escola). Pelo menos, eles poderiam ficar quietos “em vez de incomodar todo mundo”.
Compartilhar o post da barbaridade, condenar quem foi filmado e ostentar uma empatia de rede social é fácil, mas, quando isso acontece sem holofotes, autistas e suas famílias costumam ter decepções dolorosas com as pessoas que as cercam.
E você, o que faria se fosse O SEU FILHO que estivesse praticando o bullying?