Em uma época em que nossos celulares piscam a cada segundo e a nossa máquina de lavar-roupas toca uma música irritante para avisar o fim do ciclo, é muito fácil nos vermos completamente desatentos e nos perdermos em leituras superficiais. Aliás, fico muito feliz que você tenha ido além do post de Instagram e tenha clicado no link para chegar neste texto. Afinal, é bastante comum que façamos julgamentos precipitados por não termos lido ou escutado toda a linha de raciocínio do outro. Temos nos relacionado com o argumento dos outros não com o pensamento, mas com as vísceras, movidos pelo ódio e pelo ressentimento. Em suma: vivemos uma época em que não nos damos o devido tempo para abordar questões complexas com o devido cuidado.
Esta instantaneidade de pensamento, infelizmente, também acaba chegando à área da saúde. Hoje em dia, médicos acabam buscando profissionais especializados em “marketing médico”, dentistas expõem seus pacientes como se fossem manequins em perfis sórdidos com “antes e depois” de procedimentos e, parte que me toca mais diretamente neste assunto, psicólogos de diversas formações clínicas criam perfis com “dancinhas de TikTok” para falar de temas sérios e delicados como autismo, ansiedade e luto.
O que há de comum em todos estes exemplos?
Em primeiro lugar, a criação de uma demanda artificial de tratamento, o que, convenhamos, é bastante perverso em se tratando do sofrimento alheio. É como se o profissional dissesse, nas entrelinhas: “espero que você sofra para que eu possa tratá-lo”. Afinal, nestes chamados “perfis profissionais” na redes sociais, os próprios clínicos acabam oferecendo o seu trabalho como um produto desejável, assim como seria esperado de uma loja de roupas ou artigos para decoração.
Perceba o leitor que é próprio da propaganda não só a oferta de um produto, mas também a criação da sensação de falta no consumidor. É uma lógica de sedução: ao enaltecer o produto ofertado, cria no outro o desejo por aquele artigo.
Quem de nós nunca viu um post patrocinado e pensou: “Nossa, eu nem sabia que isso existia. Acho que me cairia bem”. Algo semelhante tem acontecido na área clínica: ao ver uma daquelas estranhas postagens de “5 dicas para saber se você tem TDAH”, muitos acabam se identificando com o conteúdo e pensando: “Puxa, acho que preciso então buscar tratamento”, acabam “comprando” a ideia de que precisa se tratar, mesmo que esta demanda nunca tenha surgido antes.
O papel das instituições de ensino
Entendo perfeitamente que a situação econômica do país não está nada fácil e que boa parte dos recém-formados saem da faculdade sem perspectivas a curto prazo para trabalharem em sua área de formação. Entretanto, há que se convir que há uma ética do cuidado com outro que precisa ser respeitada. Uma ética que tem como um dos seus principais princípios norteadores evitar a simplificação de questões complexas, como são os diagnósticos clínicos, especialmente na área da saúde mental.
O problema é que, muitas vezes, o desrespeito a estes princípios éticos começa na própria instituição universitária.
Nos cursos de Psicologia, especialmente nas faculdades particulares, há toda uma proposta de “preparação do graduando para o mercado de trabalho”, o que acaba se refletindo na contratação de professores cujo pensamento está alinhado com o discurso dominante do neoliberalismo. Docentes que pouco questionam os fundamentos de suas posturas profissionais e incentivam que os alunos “vejam as suas carreiras como uma empresa” ou que dizem, em sala de aula, que “os que agora são seus colegas amanhã serão seus concorrentes”. Estes dois exemplos não são fortuitos: vieram de dois profissionais com quem trabalhei em uma instituição privada de ensino.
Aliado a isso há uma crescente redução do número de disciplinas com teor crítico e auto-reflexivo, matérias que coloquem em discussão o discurso em que as abordagens clínicas são construídas. Por exemplo, em um mundo em que a lógica neoliberal de demanda de produtividade e rapidez são as tônicas, qualquer linha teórica que não levar esta especificidade em consideração corre o risco de se tornar mais um espaço reprodutor de sofrimento.
De forma mais prática: se você chegar a um consultório e disser que sofre por não dar conta dos cinquenta relatórios que seu chefe pede todos os dias, talvez o profissional vá lhe dizer que você não está sendo produtivo o suficiente porque você tem TDAH e que precisa, assim, ser tratado e medicado para este suposto diagnóstico. O objetivo seria o de fazer com que você consiga, enfim, entregar ao seu chefe os relatórios que ele lhe pede – mesmo que isso coloque você em um estado de estresse nunca antes experimentado, que provavelmente vai ser tomado como mais um indicador clínico a ser medicado, e assim por diante. Desta forma, acaba se reproduzindo a medicalização da vida e, pior, a ideia de que ser produtivo é ser normal, mesmo em uma época que exige mais do que é humanamente possível de alguém. São clínicas que pensam a cura como adaptação às demandas da cultura, sem que se questione o quanto estas demandas são ou não excessivas. É de se pensar a quem está servindo um terapeuta que, por não refletir a respeito do seu fazer, reproduz uma lógica geradora de sofrimento.
Quando um psicólogo reduz a sua presença nas redes a dancinhas no TikTok ou a listas enumeradas de estratégias para lidar com o sofrimento, ele está sendo um dos representantes desta proposta adaptativa e de apagamento da singularidade, mesmo que de modo inadvertido.
Na dúvida, não escolha seu terapeuta pelas redes sociais. Melhor é perguntar aos conhecidos ou amigos que já fazem terapia e que podem indicar alguém de confiança – e que, de preferência, dance nas festas, não nas redes sociais.