CENA 1
Quando eu era uma pré-adolescente (ainda existem pré-adolescentes?), adorava imaginar que, ao chegar da escola e entrar no meu quarto na casa dos meus pais, era como se na verdade eu estivesse entrando em um edifício e meu quarto era meu apartamento. Adorava me imaginar adulta, dona de mim, a minha vida um seriado e eu a protagonista heroína em suas buscas existenciais. Filmada, apreciada, enxergada. Não sei como essa brincadeira foi se perdendo e em qual lugar essa necessidade de imaginar que alguém estaria me acompanhando deu lugar à realidade e, ao mesmo tempo, à liberdade de que na verdade ninguém está exatamente muito preocupado com o que faço ou não faço de minha vida, que inclusive nem era assim tão emocionante. Nesse tempo, apenas os pais ocupam esse lugar de preocupação e controle, apesar dos meus – por sorte ou azar – nunca terem ocupado esse posto de maneira tão rigorosa.
CENA 2
Quando eu era já não era mais uma pré-adolescente (ainda existem pré-adolescentes?) e contava meus 20 anos de idade, foi lançado o filme “O show de Truman”. Muitos já devem conhecer a história, mas o filme conta sobre um pacato vendedor de seguros que vive numa também pacata cidade com sua esposa em uma vida absolutamente regrada e previsível. Até que alguns acontecimentos estranhos vão levando-o à descoberta de que sua vida toda é monitorada por câmeras e transmitida em rede nacional. Truman passa o resto do filme tentando se livrar desse lugar, sem entender exatamente como. A única conexão real que ele estabeleceu foi uma mulher por quem se apaixonou e que não fazia mais parte do elenco do show.
É interessante que temos a incrível capacidade de armazenar em nossas lembranças o lugar exato onde estávamos ou com quem estávamos quando grandes acontecimentos, bons ou ruins, aconteceram. Estou aqui falando de grandes eventos, como a queda das torres gêmeas ou a morte de Ayrton Sena, por exemplo. Recordo-me vividamente da minha reação ao final desse filme. Um misto de choque, empolgação e até incerteza, quando o barco em que o personagem do filme estava em sua última e desesperada tentativa de escapar daquela vida roteirizada e vigiada, colide com o céu. Lembro nitidamente do meu espanto, de como achei genial. O céu, o “horizonte”, nada mais era do que as paredes do enorme estúdio-bolha criado para o programa. Fico pensando em todo o horizonte que acreditamos ter pela frente (que podem ser paredes), e no quanto de fato, vivemos em bolhas. Ele então começa a tocar naquele céu pintado, caminha pela borda e encontra uma escada que leva a uma porta. A essa altura o “grande pai”, o diretor do programa, já havia quebrado o protocolo e aberto o microfone, falando com seu astro e lhe pedindo para não desistir, alegando que ele era uma inspiração, amado por todos os seus espectadores. Então Truman, em um último gesto de reverência e usando o bordão que ele mesmo falava todas as manhãs aos vizinhos quando saia do trabalho, diz: “Caso não os veja, bom dia, boa tarde e boa noite”. E sai porta afora em busca de sua amada e de uma vida mais autêntica. Sendo ainda uma jovem quando assisti, fiquei muito decepcionada que o filme terminava aí. Não ficamos sabendo se ele encontra ou não a sua amada (provavelmente sim, afinal de contas, estamos falando de Hollywood), nem o que aconteceu depois disso: como seria voltar a uma vida sem holofotes, sem previsibilidade, sem plateia? Como ele se adaptaria? Talvez eu tenha guardado todas estas inquietação e questionamentos para minha então iniciante carreira de estudante de Psicologia.
CENA 3
Li em uma matéria da CNN Brasil essa semana sobre uma síndrome denominada “Síndrome de Truman”. Tal diagnóstico, em alusão ao filme, significaria um individuo que vive se sentindo vigiado, observado, controlado. A matéria foi em função de uma das ex-BBB’s recentemente ter abandonado o programa e iniciado tratamento psicológico e psiquiátrico justamente em função desse “quadro”, pois afirmava ter certeza de que os demais participantes seriam atores e de que tudo ali estava sendo conspirado e antecipadamente planejado. Pergunto-me o quanto esse nome, esse diagnóstico, pode ser problematizado. Em que momento essa necessidade contemporânea (vide redes sociais como Instagram e TikTok) de ser observado, acompanhado e validado via likes e engajamento deixa de ser algo da ordem do narcísico para começar a ser algo da ordem da paranoia? Ou então, serão efetivamente distantes uma da outra tais ordens? Talvez mesmo os desejosos e produtores desses conteúdos que validam corpos e fazeres tornem-se também escravos desses olhares que nem mesmo são “reais”. Quem estamos querendo que nos veja? Que olhar é esse, que grande pai estamos esperando que lute por nós, como no filme e mostre que deseja nossa permanência nesse show?
CENA FINAL
Onde iremos parar nessa sociedade de consumo, competitiva e produtivista que nos aliena de nossos roteiros individuais e nos arremessa nessa bolha onde acreditamos ter um lugar para chamar de nosso? Somos todos Truman? Em que momento a frustração da minha pré-adolescência ao perceber que na verdade não havia ninguém me assistindo chegar em casa e acompanhando meus pensamentos, minhas inseguranças tolas e juvenis me fez mais livre ou então deu lugar a uma ilusão de ser acompanhada? Um psicanalista já disse que esconder-se é um prazer, mas não ser encontrado é um terror. Em que show elegemos estar? Que elenco está ao nosso lado? Estaremos conseguindo ser diretores e roteiristas desse grande espetáculo? Cortamos personagens que atrapalham a narrativa? Uma cena final cheia de interrogações, depois do meu ultimo texto sobre reticencias…
Caso não os veja, tenham um bom dia, uma boa tarde e uma boa noite.
Foto das Capa: Cena do filme Show de Truman | Divulgação