“Uma das vigas mestras da arte do ensaio têm sido suas condições polêmicas, estratégicas e guerreiras”.
Christian Ferrer
(Ensaísta argentino, especializado em Filosofia da Técnica,
sociólogo graduado pela Universidade de Buenos Aires)
Além da epígrafe, há outras definições do gênero literário definido como Ensaio. O termo tem relações com a química e talvez com o teatro. Nessas duas atividades, os ensaios são experimentos que podem ter resultados incertos e às vezes surpreendentes. E mesmo explosivos. Os ensaios com partículas radioativas, por exemplo, resultaram na bomba atômica. Certas peças de teatro, que exigem muitos ensaios, ao se apresentarem ao mundo, podem desmascarar e mostrar a face cruel de regimes de força.
A peça Gota D’água, de Oduvaldo Viana Filho, que adaptara a peça grega clássica de Eurípedes sobre o mito de Medeia, foi censurada durante a ditadura militar do Brasil. E Antígona de Sófocles foi proibida na ditadura de Oliveira Salazar em Portugal. Na Alemanha nazista, as peças de Brecht foram eliminadas das agendas dos teatros de todo o país.
Jorge Luis Borges, num livro que, com magníficos prefácios, comenta livros lançados na Argentina, pergunta: afinal, a que gênero literário pertencem os prefácios? E chega à hipótese sólida de que prefácios podem ser escritos como verdadeiros ensaios.
O criador do gênero ensaio foi Michel de Montaigne (1533-1592), um nobre, pai do ceticismo moderno e da inconformidade com as condições sociais de sua época.
Mas, como disse Christian Ferrer sobre a obra Radiografia de la Pampa, de Ezequiel Martinez Estrada, podemos dizer o mesmo de Montaigne: ambos atuaram como fidedignos radiologistas que fazem o diagnóstico, mas não apontam a cura (embora o façam subjetivamente).
O gênero foi quase esquecido por mais de cem anos, mas veio reviver na Inglaterra paralelamente ao início da industrialização. É que esta deu origem ao operariado urbano, às lutas por melhores condições de trabalho, às reivindicações salariais, aos sindicatos, às greves e como subproduto desenvolveu os ensaios e escritores ensaístas, os quais retratavam as novas e complicadas condições sociais do país.
É claro que estas não podiam ser contestadas e criticadas com crônicas e poesias. “Poesia numa hora dessas” (apud L.F. Veríssimo) não tem suficiente força (algumas têm) para produzir diagnósticos e terapêuticas precisos do que se passa no chão das fábricas, nas praças, nas ruas e nos debates sindicais.
Assim, se explica o surgimento na Inglaterra do século 18 do grande número e a alta qualidade crítica dos ensaístas de língua inglesa (inclusive, por osmose, nos ensaístas dos EUA). Alguns dos melhores: Francis Bacon, John Locke, Alexander Pope, Daniel Defoe, Jonathan Swift, David Hume, Thomas Carlyle, sem esquecer, já no século 20, de George Bernard Shaw, que fazia de suas peças de teatro com longos prefácios e posfácios, lúcidos e agudos ensaios sociológicos e políticos.
Enfim, penso que no momento difícil que vivemos em nosso país, impregnado de ameaças coercitivas e sentimentos de ódio, de uma situação, segundo Maria Rita Kehl, “psicopatizada” de parte da classe média, numa hora dessas precisamos, como diz Christian Ferrer, praticar prioritária e urgentemente a arte do ensaio com suas inerentes condições polêmicas, estratégicas e guerreiras.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras.
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