A data de 30 de agosto assinala o Dia Nacional de Conscientização Sobre a Esclerose Múltipla. Datas como essa têm como objetivos dar maior visibilidade à doença, informar e esclarecer a população e alertar para a importância do diagnóstico precoce e do tratamento adequado.
Uma definição sucinta, trazida por uma página oficial do governo do Estado do Rio Grande do Sul, diz que:
A Esclerose Múltipla (EM) é a doença neurológica que mais afeta jovens adultos no mundo (a idade média ao diagnóstico é de 30 anos), sendo, na sua maioria, mulheres. É crônica, progressiva e autoimune, ou seja, as células de defesa do corpo atacam o próprio sistema nervoso central, cérebro e medula espinhal, destruindo o tecido protetor (mielina), que envolve as fibras nervosas, impedindo ou alterando a transmissão das mensagens do cérebro para as diversas partes do corpo.
Para entender mais o que essa doença significa na vida das pessoas que a sofrem, recorri a textos de quem vive essa condição. No caso, o artigo “A autoetnografia como método criativo: experimentações com a esclerose múltipla” de Fabiane Gama e “Mulheres com deficiência na Amazônia: a autoetnografia como recurso metodológico para narrar histórias invisibilizadas” de Keiliane de Lima Bandeira e Kamilla Sastre da Costa.
Fabiane e Kamilla, ambas antropólogas diagnosticadas com esclerose múltipla, utilizaram a autoetnografia nesses artigos. Esse método permitiu que refletissem sobre questões sociais e culturais relacionadas à sua condição a partir de suas próprias experiências, usando suas vivências pessoais como base para suas pesquisas e escritos acadêmicos.
Ao explicar os sintomas da enfermidade, Fabiane aponta que é uma doença crônica autoimune pouco conhecida, incurável e com causa desconhecida. Suas manifestações variam muito e são imprevisíveis, pois dependem da localização e da gravidade de cada ataque inflamatório, chamado de surto, onde as células de defesa do corpo atacam o próprio sistema nervoso central. A pessoa, doente pode sofrer uma gama imensa de alterações motoras, sensitivas, visuais e cognitivas, temporárias ou permanentes, como: dormência, dor, formigamento, transtornos visuais, incontinência intestinal e urinária, diminuição da capacidade de atenção, transtornos fonoaudiólogos, cognitivos e emocionais, fadiga, entre outros.
O diagnóstico é clínico e complementado por exames mais sofisticados, como a ressonância magnética cerebral, utilizados para descartar outras possibilidades. O tratamento será variável, de acordo com as manifestações da doença, mas passam pelo uso contínuo que desarmam o funcionamento do sistema imunológico, impedindo que o organismo ataque a si mesmo, mas aumentando a vulnerabilidade a outras doenças e infecções, fazendo com que a pessoa sinta mais dores, cansaço e fraqueza.
Conhecer a experiência delas revela muitas semelhanças com os relatos de mulheres acometidas por fibromialgia, tema de uma coluna minha na Sler, e com as vivências das demais pessoas com deficiência, em especial de autistas. Um exemplo disso é a romaria a consultórios de médicos e outros profissionais da saúde, além da dificuldade em obter um diagnóstico preciso, processo que pode levar anos. Fabiane conta que, antes de chegar à “profissional certa”, ouvia que seus problemas eram decorrentes do estresse, da mesma forma que tantos pais e mães de autistas ouvem que suas preocupações são consequência de sua superproteção ou de uma suposta falta de estímulos à criança.
“Mas, como assim, esclerose múltipla? O que é isso? É contagiosa? Tem cura? Por que comigo?” As dúvidas e questionamentos de Kamilla, ao receber o diagnóstico, que aumentam com os sintomas, são comuns a tantas pessoas que tomam conhecimento de uma condição, síndrome, transtorno ou doença. Ainda mais aquelas com nome difícil e desconhecidas pelo público em geral.
O diagnóstico cria uma série de descobertas, sendo um instrumento de autoconhecimento e de autoconsciência ao ensinar os limites do corpo, o que é essencial para uma melhor qualidade de vida. Conhecimento necessário para poder expor suas dores e limitações para os médicos que lhe examinam. Uma relação que, conforme nos relata Fabiane, é traumática: “Os traumas experimentados nos encontros médicos na busca por tratamentos foram múltiplos e definiram, para mim, o que significava ser cronicamente doente.”
A identidade de doente crônica confunde-se com a de paciente e traz consigo o silenciamento da pessoa enferma. Uma relação em que uma das partes se posiciona como detentora exclusiva do saber sobre os corpos do outro, onde um fala e decide, enquanto o outro escuta. Fabiane conta: “Eu deveria confiar nos médicos, seguir suas recomendações, aceitar o diagnóstico e os tratamentos.” Ambas as autoras citadas recusam a condição passiva de paciente, Fabiane reivindica a condição de “im-paciente” enquanto Kamilla se diz “nem tão paciente assim”.
Do seu cotidiano, ambas as autoras nos contam da fadiga, do cansaço extremo que sentiam. Agora, cito Kamilla:
Fadiga imensa, terrível. Difícil até de explicar. Aliás, como explicar que uma jovem moça de 16 anos está com fadiga? Uma sensação de cansaço extremo sem ter realizado nenhum esforço físico. Isso não é possível! Só pode ser “fingimento”, manha ou desculpa esfarrapada – muitas pessoas, infelizmente, ainda pensam assim. Uma sensação de impotência tomava conta a cada dia.
Está aí uma das grandes dificuldades da pessoa com esclerose múltipla: ser submetida ao julgamento constante, comum às pessoas que possuem condições ou deficiências ocultas, também chamadas de não-visíveis ou invisíveis. Ninguém pode dizer, só de olhar para uma pessoa, se ela é autista, tem fibromialgia ou esclerose múltipla. Assim, muitas vezes, ela terá que suportar a condenação alheia, terá que ouvir que suas dores e limitações são “manha”, que “querem se dar bem”. Isso traz uma sensação constante de injustiça e impotência.
A doença traz limitações e estas, quando encontram um mundo hostil para elas, fazem surgir a necessidade de um mundo mais acessível. As autoras não falam apenas em acessibilidade física, como rampas, mas também em acessibilidade emocional e intelectual, em acessibilidade atitudinal, exigindo uma mudança de atitudes e mentalidades, tão prejudicada pelos preconceitos e pelo capacitismo.
O que reivindicam as autoras? O direito de contar sua própria história, de que sua voz seja ouvida dentro e fora dos hospitais e consultórios, de que o conhecimento que carregam consigo seja valorizado. Fabiane pede relações pautadas pela escuta dos pacientes, mais acolhedoras e menos traumáticas, de conhecimento, mas também de afetividade. Kamilla postula o fim de atitudes que hierarquizam e desumanizam seus corpos, do estigma, do silenciamento.
Escutar o depoimento de pessoas com esclerose múltipla nos traz que as maiores dificuldades enfrentadas por elas não são a doença, mas os olhares e julgamentos das pessoas ao seu redor e os obstáculos e atitudes que têm de enfrentar. Datas como essas servem para que esses comportamentos tão nocivos não se perpetuem e isso não depende das pessoas com esclerose múltipla, depende de todos nós.
Foto da Capa: Freepik
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