Chovia. As obras que expandiram o complexo hospitalar tornaram-me um estranho no acesso ao novo auditório que leva o nome da professora Fani Job. O pneumologista e poeta Rogério Gastal Xavier havia me convidado para o sarau comemorativo do 8º aniversário do Projeto Poesia no Hospital de Clínicas de Porto Alegre – HCPA. Na programação, o tributo à poesia de Maria Carpi. Minha tarefa, participar com a leitura de um poema da homenageada.
Um resfriado inconveniente tentou me dissuadir, mas o convite amigável, a presença da Maria e a provocação desse encontro, um respiro benfazejo e algo inusitado naquele ambiente onde fiz meus primeiros anos de formação profissional, tornaram obrigatória a agenda.
Uma tendência tem arejado nossas instituições de saúde. Em paralelo a todo o desenvolvimento científico e tecnológico, a criação de núcleos e iniciativas humanísticas passam a ombrear os treinamentos e capacitações assistenciais.
Desde os comitês de Bioética – no HCPA, segue exemplar há mais de três décadas o primeiro do nosso país – com a estrutura de um serviço integrado à rotina de todos os outros setores. Além de bibliotecas e sessões de leitura com pacientes adultos e crianças, corais, grupos de recreação, tais como o dos “doutores da alegria”. Também na formação, o treinamento narrativo passa a ser mais valorizado. A partir de textos literários, os futuros profissionais de saúde passam a aprofundar a capacidade de ouvir melhor o que os pacientes precisam contar. Busca-se mitigar o abismo cultural que a falta do hábito de leitura impõe no âmbito das relações humanas. Ler ajuda a ouvir e colocar-se no lugar do outro.
A poeta e defensora pública Maria Elisa Carpi, gaúcha, natural de Guaporé, tem várias obras publicadas e premiadas, e já foi Patrona da nossa Feira do Livro de Porto Alegre. Tem uma bela história pessoal e profissional e uma obra literária que é também uma metáfora dos elementos que a caracterizam. Tudo nela parece em consonância com o que Empédocles de Agrigento apontava como as bases cósmicas, os quatro elementos primordiais: o ar, a água, a terra e o fogo. Uma poesia enraizada, que respeitou ciclos de germinação, amadureceu no devido tempo e que parece ter frutificado na hora exata. Seu primeiro livro, publicado aos cinquenta e um anos de idade, “Nos Gerais da Dor”, carrega o sumo inebriante do fruto em sua plenitude.
Feliz a escolha de Maria Carpi para marcar o aniversário do Projeto Poesia no HCPA. Num artigo escrito por ela para o Caderno DOC (ZH, 25 e 26/06/2022), “Literatura e Psicanálise, uma Viagem Humana”, Maria ensina: “A poesia põe sol também no imperceptível. E compartilha com o leitor esse desdobramento, fazendo-o autor do iluminado, quando participa do risco da solidão da obra: abrir uma visão do mundo, criar outras possibilidades”. E segue: “A linguagem é a morada do homem. A linguagem está enferma. Sua cura ocorre com a união da poesia à prosa da existência”.
O poema que eu escolhera para ler, também foi o mesmo que o colega médico e escritor Manoel Luiz Varela trouxe ao sarau. Uma coincidência que talvez sugira mais do que uma afinidade eletiva. Quando editor do Boletim da Sociedade Brasileira de Reumatologia, eu já o havia publicado.
Com o título “O” Avental, segue aqui: “No centro da casa, / uma vertente. / No centro do movimento, / o avental de minha mãe. / As toalhas jamais / sabiam secar-me. / Ali acalmava as mãos / interrompidas de voar. / Ali as lágrimas / e toda a trégua.”
Talvez a escolha tenha também buscado a metáfora. Encontro toda a singela grandeza de Maria Carpi nesse poema. Ao mesmo tempo, pergunto-me quanto desse sublime e balsâmico amor maternal é desvelado quando a poesia invade um lugar onde aventais são os uniformes de quem se propõe a acolher nossos temores e lágrimas. Sim, Maria, a poesia pode salvar quando também a linguagem se encontra enferma.
Foto da Capa: Divulgação
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