Nota introdutória: Não sei se vocês todos, meus sete ou oito leitores, estão inteirados dessa circunstância, mas este seu colunista ranheta também é autor de ficção. E já que estamos em outubro, este mês que a experiência do brasileiro médio colonizado em geral passou a associar com horror por conexão direta com o Halloween americano, achei que seria uma boa compartilhar com vocês contos inéditos de horror até o fim do mês (não me olhem assim, quem pôs o Halloween na moda nos últimos 20 anos foram vocês, não eu).
Este, em particular, foi escrito há um bom número de anos após uma noite de conversas com meu amigo Leandro Rodrigues, jornalista, e tive a ideia de resgatá-lo após outro papo recente com o escritor Cézar Alcázar sobre o tema da história. Vocês saberão qual, é um tema que já teve sua cota de representações nas artes visuais. A imagem usada para ilustrar a manchete deste texto na capa, por exemplo, se chama O Pesadelo, do suíço Henri Fuselli, pintura concluída em 1781.
Imaginem um homem que dorme, a quem tentam assassinar,
e que desperta com uma lâmina no pulmão,
e arqueja, coberto de sangue, e não pode mais respirar,
e vai morrer, e não compreende nada — eis aí.
Guy de Maupassant, O Horla
Desta vez eu não tenho medo. Eu li, eu pesquisei, eu sei exatamente o que está acontecendo, eu não tenho por que me apavorar. Na outra vez foi doloroso, o pânico como uma mordaça de vidro derretido sobre os lábios, o corpo tremendo de um frio abrasivo. Mas agora eu sei, eu li, eu pesquisei.
Eu nunca fui hipocondríaco, nem de me sentir condenado a cada brisa que entra pela janela mal fechada. Não sou o tipo de sujeito que pensa em doenças como explicações para as circunstâncias desagradáveis da vida, até me irrita essa tendência de hoje, de tudo virar doença, até o que a minha mãe chama de “falta de laço” agora é síndrome catalogada com tratamento longo, se bobear até com cobertura integral pelo SUS. Não, eu nunca embarquei nessa histeria contemporânea de saúde, e nunca fui um medroso cagalhão que se apavora e corre para se esconder, supersticioso, embaixo da cama na primeira oportunidade em que a razão se mostra insuficiente. E agora que eu li, eu sei, fui no Google, fica até mais fácil aceitar o que está acontecendo, um distúrbio, apesar dessa mania irritante de hoje em dia tudo ser “distúrbio”, ainda é mais aceitável do que qualquer explicação. Agora eu não tenho medo, eu sei, eu olho para frente, eu tento dominar a taquicardia, ignorar o suor viscoso e abundante, não deixar o pânico tomar o controle, eu li, eu pesquisei, eu sei o que está acontecendo.
Da outra vez não, daquela outra vez admito que, dentre as emoções conflitantes que passaram pela minha cabeça, a principal foi o medo, uma sensação com temperatura amarela e cheiro de gelo. Havia tirado uma sesta num sábado, e desde já isso qualifica aquele dia como uma raridade, porque eu não gosto de sesta, a gente acorda pesado, imprestável. Mas aquele dia era um dos mais quentes do ano, havia uma espécie de névoa, uma baforada pegajosa que parecia paralisar o próprio tempo. As janelas estavam fechadas para não deixar o sol entrar, e no escuro quase fresco do quarto trancado cheguei a tentar pôr em ordem alguns documentos e distribuí-los em pastas no computador, mas o bafio, o silêncio da rua, quebrado pelo monótono barulho de água vindo da cozinha, onde minha mãe lavava a louça, a luz doente do monitor contrastando com o amarelo pestilento do sol passando pelas frestas na janela, tudo isso me deu uma moleza tal que, a determinado momento, sem perceber, eu me vi deitado na minha cama, as frinchas das venezianas a despejar tonalidades tristes que iam do azul ao roxo, denunciando o sono de horas no qual eu nem me lembrava de haver caído.
Eu havia me atirado na cama com o corpo em linha reta com o computador, e por isso a primeira coisa que vi ao abrir os olhos foi minha cadeira de trabalho.
E aquilo.
Sempre acordo invertebrado de um cochilo à tarde, já falei, e naquele primeiro momento eu não percebi o que estava vendo, ou percebi sem registrar, o que dá no mesmo.
Sentada à frente do meu computador havia uma figura franzina envolta em vermelho, compleição e estatura de criança. Trajava um vestido bufante cheio de pregas, feito de algo que mesmo à distância parecia ter a textura do linho e a transparência da gaze. O rosto estava coberto por um véu também vermelho, diáfano, de modo que suas feições eram nada mais que uma massa disforme na sombra do pano escarlate. E mesmo assim, eu sabia, ela estava olhando para mim.
Até aí eu não havia sentido medo, sedado pelo peso gorduroso da sonolência recente. Fora até tomado por uma tranquila simpatia, algo muito próximo à perplexidade feliz que nos assalta quando vemos algo que nos intriga. Um tempo indefinível depois é que fui me dar conta de que havia realmente um vulto vermelho e minúsculo sentado à frente do meu computador, alguém que não podia ter entrado no meu quarto por nenhum meio legítimo, uma vez que as janelas continuavam fechadas e eu mesmo havia trancado a porta do quarto antes de sentar à escrivaninha para me dedicar ao trabalho. Só então a complexa dramaticidade da situação se tornou clara para mim e foi ali que eu deveria ter aberto a boca para perguntar o que estava acontecendo, e deveria ter me erguido de um salto e me colocado em pé no centro do quarto, ou ao menos sentado na cama para exigir daquele vulto uma identificação, uma justificativa, para gritar por socorro, porque agora sim, eu confesso, eu estava me cagando de medo.
Mas eu não fiz nada, o que só aumentou meu pavor. Eu não conseguia me mover, o próprio pensamento de que a esta altura eu já deveria ter realizado uma série de movimentos bruscos e instintivos parecia um alerta enviado por meu cérebro, entrando em pânico pela falta total de movimento em meus músculos. Eu estava preso à cama, com lama viscosa escorrendo por minhas veias. Quando o terror daquela inexplicável paralisia finalmente aflorou, o vulto vermelho se moveu mais rápido do que pude acompanhar, e agora estava ajoelhado ao lado de minha cama, a centímetros de meu rosto, sussurrando algo em minha orelha esquerda com uma voz baixa, fina e rascante que lembrava o zumbido de uma centena de insetos. Seu hálito tinha o cheiro de folhas apodrecidas e eu não entendia nada do que me dizia, as palavras se arrastavam sem fissuras aparentes, pareciam tecidas com retalhos de consoantes costurados com o arquejar seco de um gato engasgado.
Apavorado, tentava desesperadamente me movimentar para, com um empurrão, afastar de mim a figura que continuava a sibilar coisas incompreensíveis no meu ouvido, e meu corpo parecia uma matéria mole apartada de mim, e a única resposta que minha carcaça inerme parecia enviar a minhas desesperadas tentativas de comando era a dor que subia de meu peito, resultado do bater furioso e incontrolável de meu coração. Quando a dor aumentou de tal modo que eu pensei que um infarto viria, meu pescoço finalmente se moveu e meu rosto ficou tão próximo da figura de vermelho que senti o toque leve e pegajoso do véu que cobria o rosto do vulto, um toque ressecado e aderente como teias de aranha. E foi nesse momento que algo como uma luz sombria cristalizou o ser à minha frente e uma única frase se delineou na litania farfalhante que ela despejava em meu ouvido, duas palavras que se destacaram da multidão de sons produzidos pela pequena figura de vermelho e que se apresentaram a mim de corpo inteiro, inteligíveis de um modo terrível:
— Em breve…
Naquele momento meu corpo se dobrou com tal violência que senti meus próprios joelhos atingirem meu queixo com a força de um soco. Coberto de um suor áspero e ainda sem atentar para o fato de que havia outra vez assumido o controle de meus músculos, fui me encolhendo de olhos fechados até a cabeceira da mesa, os braços à frente como para formar um precário escudo contra a figura à beira da cama, e só então percebi que o som havia cessado. Ao abrir os olhos, me vi sozinho, tremendo, o medo correndo pela pele como se um cardume de enguias atropelasse meu corpo.
Ali eu confesso, eu não consegui sentir outra coisa que não medo, e passei as semanas seguintes mais quieto que o habitual, fechado em um transe de pânico que, apesar de meu silêncio sobre o que havia vivenciado, pareceu se transmitir a minha mãe, acostumada a não se preocupar com meus acessos de antipatia com o mundo. Foram duas semanas em que não consegui me convencer de que havia sido apenas um sonho, e o terror de dormir e receber outra vez a visita do vulto vermelho me mantinha acordado por horas, roubando um sono que mais tarde faria falta enquanto eu cabeceava à frente do meu computador, no trabalho. Um medo idiota, eu sei hoje, porque eu pesquisei, eu estudei, eu fui atrás, mas eu nem teria feito isso se não tivesse por acaso posto os olhos no artigo que minha mãe estava lendo no caderno de saúde do jornal.
Os médicos chamam de “Paralisia do Sono”, enquanto alguns dão o nome não-oficial de “Catalepsia Projetiva”. Um distúrbio do sono, só isso, não alguma espécie de manifestação onírica sobrenatural, e eu acho isso bobagem, já falei. O fato é que estava lá, eu li no artigo e depois passei as últimas semanas procurando mais detalhes na internet, era isso, foi isso que me convenceu de que eu não precisava ter medo: durante o sono a mente paralisa os músculos para que a gente não se mexa enquanto sonha, e a paralisia cessa antes de acordarmos, por isso não percebemos a repetição desse fenômeno noite após noite. Mas, às vezes, algo errado acontece no processo, e, em um estado intermediário entre o sono e a vigília, temos a sensação de despertar quando nosso corpo ainda não foi destravado pelo mecanismo da mente. É nesse momento que surgem as alucinações, a sensação de sair-se do próprio corpo, a impressão de que há mais alguém quando estamos em um ambiente vazio, a visualização de objetos inexistentes ou de pessoas e figuras antropomórficas, as vozes estranhas.
Passei semanas vasculhando cada página da internet em busca de mais detalhes, e só aí eu pude mandar o medo embora. Estava tudo lá, descrevendo com exatidão pormenorizada minha própria experiência, havia até mesmo as causas que normalmente provocam coisas como essas: má alimentação, maus hábitos de sono, estresse, e eu tomei aquilo como um aviso. Sem o medo de terrores irracionais, passei a prevenir, a não trazer mais trabalho para fazer em casa no fim de semana, a tentar dormir mais cedo para que meu dia rendesse, até mesmo a cuidar mais o que vinha comendo, trocando os lanches rápidos na hora do almoço por uma refeição como deve ser, com mesa, pratos, salada, calma, mastigação, essas coisas, e o resultado foi imediato, eu até havia esquecido daquele episódio.
*
Até que hoje, domingo, depois de várias porções generosas da carne assada que a minha mãe fez para o almoço, eu me sentei no sofá da sala para ver televisão, anestesiando o cérebro com um propósito para mim desconhecido, confesso, e de repente a voz xarope do Faustão foi substituída pelo som familiar de gafanhotos atacando um animal agonizante. E a tela de TV estava apagada sem que eu houvesse me mexido do sofá, e, na porta que dá para o corredor da cozinha, de onde não vinha mais o barulho de água de minha mãe lavando a louça, estava um vulto, uma figura informe e esguia, tão alta que quase atingia o batente, enrolada num manto de gaze negra. O rosto parecia brilhar atrás do véu escuro com uma luz doente entre o azul e o púrpura, como a lâmpada de um abajur coberta por um xale preto. Eu ouvia sua voz como um sussurro diretamente no meu ouvido, embora a figura não se mexesse de onde estava.
E meu corpo agora parece aparafusado ao assento do sofá, o pescoço caído para trás no encosto sem que eu consiga me mexer, e ainda assim eu a vejo enquanto sinto os músculos transformados em barro viscoso, e da outra vez isto seria motivo de medo, eu sei que eu ficaria aterrorizado enquanto essa criatura parece estar chegando perto – ou será que ela está aumentando de tamanho, não sei, talvez ambos. Eu sei que há um mês eu estaria em pânico, mas agora eu não tenho medo, eu li, eu pesquisei, eu me lembro do que dizia lá no site, tanto as alucinações como a própria paralisia são inofensivas, eu li, eu pesquisei, eu não tenho por que ter medo enquanto essa coisa seja o que for leva a mão ao rosto, eu sei que em breve eu vou acordar gritando e chamando minha mãe que estará em algum lugar desta casa, eu não tenho por que ter medo, eu tenho certeza, ela que venha, que me enfrente, que me mostre seu rosto, erguendo o véu como está fazendo agora, descobrindo seu rosto inominável sob a gaze, algo horrível demais para a sanidade de minha mente, e ainda assim vai ficar tudo bem.
Eu tenho certeza. Eu li.