Se revivo a perda, é porque pesa a ausência e valiosa impõe-se a memória.
Porque aquele dia era um sábado onze de setembro data que outra amiga havia resolvido festejar os seus quarenta anos já que a filha não aceitara a festa dos quinze e já passava de uma da madrugada quando chegamos em casa portanto não era mais aquele dia nem era mais sábado e avançava o domingo e já era 12 aniversário de outra amiga e havia três anos que as torres haviam sido derrubadas e as crianças precisavam ser colocadas na cama e enquanto minha mulher disso cuidava busquei os e-mails e só havia um sendo que muitas vezes nem um há que valha a pena enquanto a vida dispara sem vírgulas.
Era dele a mensagem. Orual, meu amigo. Mostrava-se preocupado com minha saúde, com decisões que eu havia tomado e que por certo me tomariam tempo e trariam afazeres, nem sempre prazeres, mas que, enfim, dizia ele, – és moço! Estava também ele vestido de mocidade e entusiasmo, contando o encontro da noite anterior no Barranco, com o poeta José Eduardo Degrazia e o professor Cícero Galeno Lopes, que lhe emprestara o conhecimento crítico na análise do seu último livro publicado.
Naquela mesma madrugada, poucas horas depois de ele ter escrito aquilo, minutos depois de eu ter lido e ter sentido toda a alegria contida na mensagem, recebi a notícia de que não estava bem. Cheguei a vê-lo, momentos antes daqueles que lhe tiraram a lucidez, minutos antes daqueles outros, angustiantes, de choques que o trouxeram de volta ao compasso de batimentos, mas nunca mais à esfera das compreensões. E assisti à luta de quase dois meses, explicável apenas se necessária para amenizar o assombro da perda súbita, cultivar uma conformidade árdua, pouco aceitável.
Orual Soria Machado faleceu aos 61 anos, no dia 5 de novembro de 2004. Vítima de problemas cardíacos insuspeitados, após uma internação prolongada, em coma profundo, na unidade de tratamento intensivo do pronto-socorro municipal.
Ele foi sempre dedicado e atencioso amigo. Construiu uma família, um clã, pequeno, mas extremamente afinado. Não uma orquestra sinfônica, antes um quarteto de cordas, um conjunto de câmara. Vive-se a paixão pelas histórias no âmago daquela gente, o gosto por tramas bem contadas e com a sensibilidade necessária.
Na obra de Orual, a sua domada revolta no que é injusto, no que não está certo, no que poderia mudar. A preocupação que perpassa é a de um homem antes de tudo solidário.
Natural de Bagé, soube fazer escolhas e teve determinação para mudanças. Dentista de formação, tendo trabalhado alguns anos em Lavras do Sul, afastou-se quando percebeu que não era aquele o caminho. Passou a morar em Porto Alegre, quando assumiu a gerência da TV Educativa. Fez mestrado em administração e cursos de pós-graduação no exterior. Apresentava-se como professor. Atuou como diretor de departamento na Secretaria de Educação e trabalhou na Fundação de Desenvolvimento de Recursos Humanos e no SESC.
A paixão pela literatura sempre esteve latente, presente, à espera. Publicações esparsas, alguns prêmios, a leitura constante. Em 1990, o Instituto Estadual do Livro – IEL – publica Descaminhos, seu primeiro livro de contos. Em 1995, lança Fronteiras Amargas, contos, pela Editora Angelus. No ano seguinte, passando a publicar pela Mercado Aberto, a primeira narrativa longa, Os Náufragos da Terra, com a qual recebeu o “Prêmio Peregrino Júnior” da União Brasileira de Escritores – UBE, para o melhor romance publicado no biênio 1996-97. Em 1998, a novela Territórios Perdidos, que faz jus ao “Açorianos de Literatura de Porto Alegre”, em 1999, e ainda, em 2000, ao “Prêmio Eça de Queiroz – Especial do Júri”, da UBE.
Em 2000, lança O Longo Amanhecer do Sul, aprovado pelo Fumproarte, “um mosaico de histórias e fatos sobre a conquista e ocupação das terras rio-grandenses”. Uma leitura fundamental, obrigatória, para a compreensão da questão agrária.
Lamento que sua obra ainda não tenha sido mais valorizada. No exíguo espelho da mídia, defrontam-se melhor as vaidades ligeiras. Para certas descobertas, como o anagrama de um nome, cultive-se a paciência. No registro do filho Orual, refletiu-se Lauro, o pai. Também gostava de escrever.
A boa literatura não se faz de revelações fáceis. Questiona, instiga, provoca.
O. Soria Machado fez suas escolhas e deixou o seu legado. O diálogo permanece pela sensibilidade no mando das palavras, dos temas, dos conflitos abordados. Aquela que foi sua grande personagem e inspiração – a terra -, também nos serve de exemplo para entender a inevitabilidade dos ciclos. Em Gênesis, 9,22: “Enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite.”
Incompreensíveis Descaminhos nos levam a Fronteiras Amargas. Territórios Perdidos que desconhecemos, pobres de nós, Os Náufragos da Terra. De fé só possuímos uma, desnorteada, que a um só tempo se abala e se nutre com uma vaga esperança n’O Longo Amanhecer do Sul.
Resgato esse texto que escrevi há duas décadas, em novembro de 2004, logo após a sua morte. Postumamente, em 2006, foi publicado mais um livro de contos do autor, A Aposentadoria do Demônio. Haveria outros, por certo. Reler sua obra ameniza a falta que faz. Teríamos muito a conversar. O amanhecer do Sul alonga-se, impõe-se o clamor de novas semeaduras e utopias, e o demônio parece ter pedido revisão de sua condição previdenciária.
Foto da Capa: Montagem do Autor
todos os textos de Fernando Neubarth estão AQUI.