Certa vez fui a Brasília para o casamento de um grande amigo. Antes da cerimônia propriamente dita, o camarada a quem fui visitar nos levou para conhecer alguns dos principais “pontos turísticos” da cidade. Uma visita, aliás, cujas memórias ainda hoje para mim têm o caráter vago e onírico de uma expedição a outro planeta. Era domingo, quase ninguém na rua, a cidade aparentava estar vazia, e era um tipo diferente de vazio, menos uma cidade-fantasma abandonada pela decadência econômica no velho Oeste e mais o tipo que se vê hoje em filme pós-apocalíptico de zumbi, por exemplo. Meu amigo nasceu, assim como eu, em uma cidade velha e pequena (acho que “apequenada” talvez seja mais apropriado) com ares de fim de mundo na Campanha, o que talvez explicasse por que ele parecia pensar que qualquer coisa vira marco turístico e ponto de visitação só porque é grande e está na Capital do país. Assim, sem que até hoje eu entenda muito bem por que, ele achou que eu devia conhecer o templo colossal que a Legião da Boa Vontade havia construído por lá.
Adendo número 1: as vagas lembranças que eu tinha dessa entidade, umas propagandas que passavam na Band quando a emissora estava encerrando as transmissões, além do próprio nome, sempre me deixaram com a impressão de que fosse alguma entidade filantrópica, ainda que de filosofia religiosa. Assim, não entrava na minha cabeça (confesso que não me dediquei a pesquisar o assunto, então ainda não entra) que uma entidade assim precisasse de seu próprio templo.
Adendo número 2: que eu saiba, meu amigo nem era exatamente um “homem de fé” praticante, em nossa adolescência, ele era um panfletário marxista, e mesmo depois sempre o considerei mais ligado ao bom e velho cristianismo à brasileira dos saudosos tempos em que o cara tinha religião mas nem ia na Igreja direito.
Dito tudo isso, lá fui eu conhecer o tal templo. Não sei se hoje, mais de 20 anos passados, algo mudou, mas na época fui um tanto surpreendido pelo que vi, quase um estudo de caso do misticismo high-tech do segundo milenarismo: pinturas gigantes de Cristo espalhadas pelas paredes, naquele estilo ultrarrealista que cruza ilustração de panfleto bíblico que querem entregar na tua porta na manhã de domingo com os momentos menos inspirados de Alex Ross. Mas havia também pedras e fontes “energéticas”, mármores, estruturas piramidais de aço e vidro, luzes estrategicamente colocadas para causar impacto com sua iluminação indireta de um azul quase radiativo. Pinturas do fundador da agremiação no mesmo estilo das de Jesus. Tudo criado para reproduzir uma experiência sublime adaptada à nova era.
Claro que eu não disse isso para o meu amigo naquela época, mas achei o lugar meio ridículo.
Sublime
Uns anos antes disso, eu, ainda adolescente, trabalhava como contínuo (imagino que hoje diriam “assistente” ou “auxiliar”, esses eufemismos para funções mal remuneradas um grau acima de estagiário) numa rádio do Interior – na mesma cidade fim de mundo decadente mencionada antes aliás. Certo dia, um dos operadores de mesa puxou de uma das prateleiras de madeira que dividiam a discoteca o disco Atom Heart Mother, do Pink Floyd, o célebre “álbum da vaca” e me mandou guardar no outro lado da sala porque claramente aquilo “disco de música gauchesca” e estava no lugar errado. Eu também não conhecia o álbum, mas ao ler o nome do disco na lombada reconheci o nome da banda (eu ainda não conhecia o disco) e vi que ele havia cometido um equívoco. Fui até o estúdio auxiliar e pus o disco para tocar. A primeira música, If, me atingiu como uma pedrada. Um colega que passava (outro, não o operador) ouviu a música do corredor, parou, ficou escutando por algum tempo e, no auge do meu barato com aquele som novo descoberto naquele exato instante me perguntou: “tá, mas essa música é só esse violãozinho com ‘tantarantantararan tantan”, não sai disso?’
Ele achou ridículo.
Eu achei sublime.
Estão aí dois exemplos anedóticos de algo que deveria ser óbvio. A experiência com o sublime, seja na arte, seja na vida, é subjetiva e condicionada a um sem-número de fatores que tornam a interpretação final única. Claro, ao mesmo tempo que esse pensamento é um convite perigoso a um relativismo que hoje é muito usado como rendição ao mercado sob pretexto de uma suposta democratização de parâmetros, por outro lado há aí uma verdade objetiva que muitas vezes é escamoteado no próprio exercício da fruição estética ou da atividade crítica. Contexto importa. Tanto o da obra quanto o seu próprio.
Por trás dessa ideia, o escritor britânico Nick Hornby manteve durante anos uma coluna na revista literária The Believer na qual falava dos livros que lia, mas também fazia a crônica dos muitos elementos cotidianos que poderiam influenciar na experiência da leitura naquele momento em particular. Já mencionei esse livro, aliás, na minha segunda coluna neste espaço (leia aqui), e portanto me permito resgatar o parágrafo que escrevi na época:
“Todo mês, Hornby comentava em sua coluna não apenas os livros que lia, mas o quanto as circunstâncias de sua própria vida influenciavam em sua apreciação da narrativa ou mesmo na sua capacidade de ler uma obra até o fim, dado que ele tinha um bebê pequeno em casa na época’.
Relativismo
Isso significa que não há uma obra que possa ser classificada de “boa” e outra de “ruim” porque sempre alguém terá seus motivos para gostar de alguma coisa? Não, não necessariamente. Para mim, a chave do processo é que a fronteira que demarca o ridículo do sublime é tênue, e atende pelos nomes de “boa vontade” ou “predisposição”. Se você já tem prevenção contra uma coisa, o que vier dela será ridículo, e você relutará muito antes de conceder que uma coisa que parece sublime é simplesmente um ridículo que te agrada. E esse é um julgamento feito na base de preconceitos, o que nem sempre é uma boa maneira de se chegar a uma espécie de entendimento de nada se você já quer de saída que seu pensamento seja apenas confirmado (andamos vendo muito disso).
Claro que, como “teoria estética”, isso não se aplicado generalizadamente – e o motivo principal é porque há coisas que não são nem ridículas nem sublimes, ficam no meio do caminho justamente por não ousar em nada. Não deixam, muitas vezes, de ser interessantes ou divertidas, mas não parecem justificar sua existência para além do mais do mesmo (que tem seu lugar no mundo, mas deveria ser muito menos proeminente do que é, convenhamos). Livros comuns, músicas parecidas uma com as outras, quadros que dondocas que fizeram ateliê de pintura pintam: você compra para não deixar a parede vazia, você compra porque quer dar uma força ao autor, ou o artista é seu parente, mas você não deve se enganar sobre o valor artístico daquilo. Talvez sempre haja espaço para uma ou duas coisas que são fora do comum, geniais, e sobre as quais não pode pairar dúvida, mas estas são poucas, e cada vez menos numa época de contestação do cânone com o reconhecimento de que ele próprio é elaborado seguindo preconceitos de época.
Curiosamente, numa espécie de efeito rebote, essa tentativa de pôr o cânone em crise, embora partindo dos argumentos corretos, parece ter entronizado definitivamente o processo da predisposição ou da boa vontade como chave para o juízo em arte, estética e o que mais vier pela frente. Pois eu, que estou aqui dobrando a esquina dos cinquenta em pouco tempo, cada vez me convenço mais de que esse tipo de juízo, o absoluto versus o relativo, deixa de fora um elemento importante da contemporaneidade: o caráter cíclico de determinados fenômenos culturais, e o quanto as imposições de mercado ajudam a dar forma a esses ciclos.
Vivemos hoje, claramente, o ciclo da nostalgia desenfreada, no qual temos duas vertentes em ação: por um lado, gente chegando aos 30 anos com saudade de muito do que conheceu nos anos 2000. Por outro, uma turminha nerdola meio ranheta da minha idade que faz muito barulho porque “a cultura WOKE dominou tudo”, e como a cultura WOKE não dominou nada, apenas sinalizou uma possível nova tendência de exploração de mercado, a grande indústria cultural às vezes sinaliza para o outro lado. E é assim que agora temos essa enxurrada de filmes pipoca de franquias, por exemplo, como o último filme do Flash, o último do Homem-Aranha, o mais recente dos Jurassic Park e até o diacho do Indiana Jones tentando apelar à nostalgia de mais de uma geração referenciando praticamente todos os filmes antigos da série.
Risco
Mas é na questão do risco que, para mim, reside o nó dessa minha teoria estética furada particular. Oitenta por cento do que se vê hoje não é ridículo nem sublime em qualquer ponto de vista porque não há quase risco estético envolvido (empresarial sim, uma vez que esses caras gastam num único filme uma grana que 99% da população nunca vai ver na vida, claro que o risco fiscal existe. E curiosamente, parece que ele mais se aprofunda quanto mais tentam jogar com segurança).
Nesse sentido, acho que uma das coisas inescapáveis de um artista digno do nome é o risco de não trilhar o seguro caminho do bom-gosto. Sabendo, claro, que mesmo aquilo que gente bem-formada e sofisticada considera “bom-gosto” não escapa de um componente de classe que é onipresente na sociedade brasileira.
Em que ponto a ironia macabra de um Rogério Skylab passa a fronteira do escatológico para virar arte bem-humorada? Por que Marisa Monte cantar “Amor I Love You” é o máximo enquanto Reginaldo Rossi cantar “Mon amour, Meu bem, Ma femme” é brega? O que faz do amor classe média essa coisa que flerta com a transcendência enquanto o amor proletário de porteiros, domésticas, pedreiros, policiais militares, seguranças e balconistas é brega? O que torna o Los Hermanos de Todo Carnaval tem seu Fim tão superior a Anna Júlia? Aliás, por que a classe média só acha legal o carnaval melancólico? Por que Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos era uma merda até que o Caetano gravasse? E músicas do Peninha? Por que Proibida Pra mim era constrangedora com o Charlie Brown, mas tanta gente amou com o Zeca Baleiro (para mim a do Baleiro é mais porque ele decide corrigir um erro gramatical que estava na música original, como se quisesse manusear a música usando luvas)? Por que tanta gente que ainda sente saudade da rebeldia de seu roquenrou oitentista é hoje tão visceralmente contrária ao funk, por exemplo?
Cada um de vocês terá seus próprios argumentos para validar seus pontos de vista. Para mim, sei que vai ter coisa que eu não vou gostar mesmo que tente. Mas se eu conseguir sentir que ali houve um risco tomado pelo artista, eu estarei mais disposto a respeitá-lo.
Mesmo que o ache ridículo.